O BANCO DE DADOS EM NEUROLINGÜÍSTICA NA RELAÇÃO DADO/TEORIA

(The Neurolinguistic Data Bank in the relation between data/theory)

 

Cilene CAMPETELA (UNICAMP)

 

 

ABSTRACT: This paper intends to spread the results around two kinds of change on Neurolinguistic Data Bank. The first one is about the codification of verbal and non-verbal processes of meaning; the other one is about some explanations about transcription methode.

 

KEY-WORDS: BDN; phonetic transcription; verbal/non-verbal process of meaning.

 

0. Introdução

 

O objetivo desta comunicação é divulgar e discutir os resultados obtidos pela pesquisa sobre o Banco de Dados em Neurolingüística (BDN), que se realiza no Projeto Integrado em Neurolingüística (CNPq: 521773/95-4).

O processo de formação deste Banco tem sido evolutivo, ou seja, sua implantação tem passado por etapas significativas de adequação e modernização: a) adequação aos interesses da pesquisa neurolingüística, através da inserção de categorias lingüísticas no sistema de busca e de descrição das condições de produção do enunciado, o que torna o BDN acessível ao desenvolvimento de pesquisas sob vários enfoques: fonológico, sintático, discursivo etc.; b) modernização, para que os dados possam ser selecionados através de um programa de computador que possibilite agrupar informações produtivas para o conjunto de pesquisas que o projeto abriga.

Este artigo versa sobre duas adequações significativas sofridas pelo Banco de Dados em Neurolingüística (BDN), que decorreram da sua aplicação em pesquisas. Uma delas é sobre a necessidade de se separar em duas colunas as informações correspondentes a processos de significação verbal e a processos de significação não verbal. A outra adequação se refere ao modelo de transcrição, utilizado pela equipe de transcritoras do projeto, que opta por preservar marcas vernaculares e não preservar traços fonéticos de falas inteligíveis, dando espaço a um modelo adequado à situação de interação entre sujeitos afásicos e não afásicos.

 

1. Sobre as colunas “Observações sobre as condições de produção de processos de significação verbais” e “Observações sobre as condições de produção de processos de significação não verbais”

 

Como se sabe, a tabela de transcrição do BDN era composta por cinco colunas: 1. código de busca; 2. numeração das linhas; 3. sigla do locutor; 4. Transcrição; 5. Observações sobre a produção do enunciado. Esta quinta coluna contém observações que explicitam a natureza dos dados: produto de interação de pessoas afásicas e não afásicas que vivenciam em grupo várias situações pragmáticas.

A linguagem como prática social - formulação em que se baseia o Projeto Integrado em Neurolingüística - provocou a necessidade de complementar a tabela do BDN, dividindo a quinta coluna em duas com informações sobre as condições de produção do enunciado verbal e não-verbal.

Estas colunas passaram por uma série de revisões. Com o uso do BDN nas dissertações de mestrado de Mármora (2000) e Fedosse (2000), que versam sobre o estudo da relação da linguagem com a praxia no contexto da afasia, observou-se a necessidade de separar a observação relativa aos “processos de significação verbais” da observação relativa a movimento e gesto – que passaram a compor a coluna “processos de significação não-verbais”.

Portanto, na quinta coluna, no caso de registro auditivo, incluem-se observações acerca do que distingue o enunciado produzido, ou seja, ritmo pausado, acelerado, hesitação, pausa breve, pausa longa, se se trata de leitura de material escrito. Também se observam condições auditivas do dado como: ininteligível por baixa intensidade da voz, por distância do gravador, por sobreposição de falas, por ruídos externos” etc. Há ainda a rubrica “cf. fita” acompanhada de transcrição fonética e prosódica. Note-se que os trechos que foram, antes de 1996, considerados inteligíveis somente com a ajuda da transcrição fonética e da dinâmica da interação verbal foram acrescidos da descrição das condições de produção do enunciado verbal e não-verbal.

É importante destacar que, após a transcrição, o BDN passa por uma revisão que consiste na segunda audição para revisão da transcrição fonética, inserção do código de busca e adição de observações de cunho descritivo sobre as condições de produção do enunciado verbal.

Cabem também nessa coluna observações analíticas feitas pelo pesquisador sobre o dado por ele selecionado. Portanto os dados do BDN já selecionados pelos pesquisadores contêm observações analíticas.

A observação descritiva é composta de fatos observáveis que complementam a dinâmica da oralidade; já a observação analítica envolve um conhecimento especializado que diz respeito a uma análise de cunho interpretativo.

 

Observação de cunho descritivo (realizada pelo revisor)

Observação de cunho analítico

Observação sobre processos de significação não verbais (realizada pelo pesquisador)

Outros sujeitos ajudam, fazendo o mesmo gesto de SP.

 

Outros sujeitos ajudam fazendo o mesmo gesto de SP, mas com mais rapidez e sincronia, fornecendo mais detalhes visuais representativos do fogo subindo em labareda.

SP faz um gesto vertical - com a mão esquerda - realizando um movimento circular. Sobe até a altura do tronco.

 

2. Sobre os ajustes realizados na coluna “Transcrição”

 

Nessa coluna, são feitos dois tipos de transcrição: a fonética, com base no IPA (International Phonetics Alphabet), para alguns enunciados (aqueles que são apenas foneticamente ininteligíveis) e a que chamamos simplesmente de transcrição, por conter marcas de oralidade que variam ou de registro para registro ou de falante para falante. Por exemplo, não se escreve mundo como ['mundU], falando como [fa'lÎ)nU], leite como ['lejtSi]; mas se escreve para como ‘para’ ou ‘pra’, conforme aparece em diferentes contextos; não é como ‘não é’ ou ‘né’, conforme aparece em diferentes contextos; e assim por diante. Nessa coluna o registro é feito com base no “o que” foi dito diferentemente das duas colunas de observações em que se procura marcar o “como” foi dito e/ou mostrado.

Sobre o sistema de codificação dos dados neurolingüísticos, foram tomadas algumas decisões:

 

2.1. Preservar algumas marcas vernaculares

 

Apesar de existir um embasamento do sistema de codificação do BDN no sistema ortográfico, optou-se por manter algumas características de fala do Português Brasileiro, por se tratar de transcrição de linguagem oral. Algumas considerações sobre as diferenças entre a transcrição ortográfica e a transcrição do BDN devem ser feitas.

No âmbito do sistema de codificação do BDN, pretende-se que a linguagem oral não seja representada pela linguagem escrita da língua portuguesa. Do ponto de vista lingüístico, a transcrição ortográfica, ou seja, a transcrição baseada na escrita ortográfica, descaracterizava os dados orais. Manter marcas vernaculares na transcrição que se faz dos dados do BDN é justificável, portanto, à medida que se pretende registrar contextos de variações lingüísticas da fala tal qual ela é verbalizada.

Para citar um exemplo, observem-se os seguintes dados:

 

a.     Vamo começá, né, pessoal? (Vamos começar, não é, pessoal?)

b.     Pra começar agora? É difícil... (Para começar agora? É difícil...)

 

No contexto (a), foi dito ‘começá’, enquanto que no contexto (b) foi dito ‘começar’. Marcar as duas ocorrências se torna importante para que estes dados possam subsidiar futuras pesquisas em áreas da lingüística, como a sociolingüística, por exemplo.

 

2.2. Não preservar traços fonéticos

 

Ao contrário do que acontece com o registro de marcas vernaculares, não se faz necessário registrar alguns traços fonéticos que reconhecidamente não interferem, nem modificam a fala, como mostram os exemplos:

 

c.     eli ficô contenti, ó lá! (Ele ficou contente, olha lá!)

d.     u qui aconteceu nu mundu? (O que aconteceu no mundo?)

 

Este tipo de transcrição não seria coerente com as normas da escrita ortográfica, nem com as da trascrição fonéticas. O mais adequado, nestes casos, seria utilizar o símbolo fonético [U], que corresponde ao fechamento maior do “o” em contexto átono, no final de palavra; da mesma forma, seria utilizado o símbolo fonético [i],correspondente à maior altura do “e” em contexto átono, final de palavra, em algumas variedades vernaculares do português brasileiro.

Além disso, não é o simples ato de trocar “e” por “i”, “o” por “u” que garante a proximidade da escrita com a oralidade; ao contrário, falantes de português, que conhecem o padrão acentual do léxico da língua portuguesa, poderiam entender que as palavras escritas como “contenti” e “mundu” devam ser lidas como as palavras “compreendi” e “tatu”, por exemplo.

Ou seja, seria mais complexo e demorado o processo de transcrição pela necessidade de se implantar a transcrição fonética de acordo com os símbolos fonéticos do IPA em todos os dados do acervo, além de restringir o BDN ao uso de lingüistas, excluindo pesquisadores de outros domínios: fonoaudiólogos, médicos, fisioterapeutas, educadores etc. Por essa razão, optou-se por não marcar traços fonéticos mais recorrentes, também porque são traços que não indicam variação lingüística entre os falantes participantes do CCA.

 

3. Considerações finais

 

Segundo Coudry (2000), o estudo lingüístico da linguagem de sujeitos afásicos mostra que a afasia afeta a linguagem em um dos seus níveis (fonético-fonológico, sintático, semântico e pragmático), havendo, certamente, repercussão de um nível sobre o outro no funcionamento discursivo da linguagem (Benveniste, 1966 e Jakobson, 1975), tal como ocorre com a linguagem não patológica. A afasia se constitui, pois, de alterações em processos de significação relacionados aos níveis lingüísticos e às suas relações.

É fundamental para o Projeto Integrado em Neurolingüística que a transcrição contemple as condições em que os enunciados foram produzidos. Tal atitude metodológica faz sentido por se tratar de fenômenos lingüísticos que só podem ser analisados como significativos por incluírem fatores não verbais.

                Há um processo cíclico de elaboração do BDN. A utilização do BDN por pesquisadores revela uma instabilidade necessária, constitutiva do movimento da teoria para o dado e vice-versa. É por esta mobilidade que o BDN não é apenas um depositário de dados como também contempla categorias de descrição que são a base para pesquisas que incluem a análise de fatores não-verbais para sua realização. No fluxo dado/teoria as pesquisas contribuem para a inclusão de categorias descritivas constitutivas do BDN.

A seleção do conjunto de dados para análise neurolingüística presente nas dissertações de Mármora (2000) e Fedosse (2000) demonstra o que é este movimento dos dados para a teoria, e vice-versa, em pesquisas cujos aspectos não verbais são fundamentais para compreender o sentido do não dito, além de contribuir para a formulação de uma teoria sobre gesto, tendo em vista a relação entre linguagem e práxis presente nos estudos discursivos das afasias.

 

RESUMO: Este artigo pretende divulgar os resultados sobre duas mudanças ocorridas no Banco de Dados em Neurolingüística (BDN). A primeira consiste na codificação dos processos de codificação verbal e não verbal; a Segunda versa sobre o atual modelo de transcrição utilizado no BDN.

 

PALAVRAS-CHAVE: BDN; transcrição fonética; processo de significação verbal/não verbal.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

Benveniste, Emile (1966). Problemes du language. Collection Diogene: Gallimard. 217p. 

coudry, Maria Irma Hadler (2000) Relatório Parcial de Pesquisa - CNPq: 521773/95-4 - Projeto Integrado em Neurolingüística: Contribuições da Pesquisa Neurolingüística para a Avaliação do Discurso Verbal e Não-verbal. Período: 08/1999 a 02/2001).

Fedosse, Elenir. (2000) Da Relação Linguagem e Praxia: Estudo Neurolingüístico de um Caso de Afasia. Dissertação de Mestrado. Campinas/SP. 153p.

Jakobson, Roman (1975). Fundamental of language. The Hage: Mouton. 96p.

Mármora, Cláudia Helena Cerqueira (2000). Linguagem, Afasia, (A)praxia: Uma Perspectiva Neurolingüística. Dissertação de Mestrado. Campinas/SP. 211p.