O BIVOCALISMO  DE BAKHTIN NO CONTO “PAI CONTRA MÃE” DE MACHADO DE ASSIS

(THE BAKHTIN’S DISCOURSE BIVOCAL IN THE  SHORT STORY  “PAI CONTRA MÃE” OF MACHADO DE ASSIS)

 

Sandra Maria JOB.(Universidade Estadual de Londrina-UEL)

 

 

ABSTRACT: This text analyses the bivocal discourse in the short story “Pai Contra Mãe” of Machado de Assis, according to the Bakhtin. The objective is to identify different voices that appearing in the text.

 

KEYWORDS: Bakhtin;discourse;social voices.

 

 

Toda e qualquer análise feita em uma determinada   obra tende sempre a trazer à tona uma nova luz e uma nova dimensão artística da mesma, possibilitando várias interpretações e comprovando que, quando boa, ela é sempre atual e imortal. Além disso, é através de uma dessas análises que acabamos compreendendo um pouco mais a sociedade e o povo deste ou daquele período histórico. Atualmente, duas das formas de análises muito discutidas são o dialogismo e o plurilingüismo.Em ambos a característica marcante é a presença da  “voz do outro”.

Dentro do discurso   bivocal, plurilingüismo e dialogismo estão intrinsicamente  ligados,  porém ao falarmos em dialogismo  estamos nos referindo a palavra que  possui duplo sentido  “voltando-se para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um outro” (Bakhtin, 1981:160-161).Resumidamente, em um único discurso há duas vozes significativas que se cruzam em  um determinado ponto e que dialogam entre si . Quanto ao plurilingüismo que também compreende num mesmo discurso a existência da voz do outro, Bakhtin diz que:

 

  “...o plurilingüismo é submetido a uma elaboração literária  . Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso, diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua época” (Bakhtin, 1988:106).

 

Isto é, a linguagem do narrador e/ou personagem  pode expressar diferentes vozes sociais dentro de um único discurso   através da “voz do outro” e  de forma implícita. E ambos ocorrem concomitantemente, pois não ocorre dialogismo sem que haja, mesmo que  de forma indelével, o plurilingüismo.

Nos dois casos,  pela complexidade quanto à forma de se apresentarem no discurso, cabem explicações mais longas e detalhadas , porém o objetivo não é elucidar nem conceituar dialogismo e plurilingüismo, mas analisar como  se apresentam no conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis.

“Pai contra mãe” encontra-se na coletânea  Relíquias de Casa Velha, publicado em 1906, dois anos antes da morte do autor , e relata a história de Cândido Neves, cuja profissão é “pegar escravos fugidos” (Assis,1997:159). A narração é feita em 3ª pessoa e o narrador em Machado de Assis dispensa quaisquer  comentários  dados os inúmeros estudos a respeito do mesmo, porém é nesse mesmo narrador que  se pode verificar o bivocalismo tão   trabalhado por Bakhtin. Para aplicação usaremos algumas frases do conto e essas frases, na sua maioria, são orações  coordenadas. Essas orações, à exceção de uma, são todas proferidas pelo narrador.

No discurso, a voz do narrador se apresenta aparentemente sob uma linguagem uniforme, cuja única finalidade  e colocar o leitor a par de fatos que  antecedem e culminam no clímax do conto, ao contrário da “voz do outro” que cruzada com a do narrador, evidencia-se da última pelos acentos nos termos sintáticos carregados de ironia. A “voz do outro” é plurilingüisticamente significativa; ora ela se apresentará  fazendo uso da linguagem social  escravocrata, ora antiescravocrata, humanista e até mesmo machista.

O bivocalismo inicia-se  a partir da frase contínua  a que introduz o narrador: “Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício” (Assis, 1997:659). Nessa oração subordinada  a voz do narrador se rende a “voz do outro” que o questiona e possivelmente até o condene pelo que será dito. Mediante essa “voz” que o narrador antecipa, ele sutilmente já se defende para se eximir de qualquer transgressão, ou de uma má interpretação pelo “outro”. É como se alguém lhe tivesse dito “por que falar disso?”, ou ainda “esqueça, não vamos mais falar nisso” e ele à guisa de explicação “ não, eu só falarei por se tratar de um trabalho qualquer”. Porém, nessa aparente voz do narrador estaria subentendida a voz do próprio autor que, usando da dependência das orações entre si, ligadas pelo “senão” que condiciona a primeira oração a segunda, justifica a sua atitude perante  as colocações posteriores dentro do texto além de  distanciá-lo do assunto a ser tratado. O uso do pronome indefinido “certo” e do  substantivo “ofício” marcam ainda mais a posição de distanciamento que o autor quer manter para com o assunto a ser tratado, pois  “certo”  não particulariza e “ofício” generaliza e tem uma denotação não depreciativa.

Na seqüência,  esse mesmo narrador  que quer chocar ou ainda ouvir a indignação do outro diz: “Era grotesca tal máscara” (Assis, 1997:659), e quando a voz do outro o interpela indignado, exaltado , o narrador ameniza : “mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel” (Assis, 1997:659). No intento de calar as indagações  espantosas e/ou incrédulas da voz do outro ou ainda justificar  a sua crueza ao relatar tais fatos, continua  : “os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas” (Assis, 1997:659).E explicitamente  se dirige “a voz do outro”: “Mas não cuidemos de máscaras” (Assis,1997: 659). Afinal, o que o narrador quer que o outro leia nas entrelinhas do seu discurso  e que esse assunto é nada, banal e que em nada o atinge,  porém sua intenção inicial, que era chocar o outro,  ele fez e obteve resultados mediante suas réplicas  abertas em resposta às replicas veladas do “outro”.

Fato curioso e que o narrador tem consciência da voz do outro. Fala, não influenciado pala voz do outro, mas para a voz e desespero do outro a quem ele não permite interferências e para quem ele sempre tem uma réplica velada. É um narrador bivocal que não se deixa “tocar” pela voz do outro, antes, quer “tocá-lo”.

Na conclusão do 2º parágrafo,  o narrador; além de incluir na sua fala a voz do outro “Mas não cuidemos..”, nós não cuidemos,  ele e o outro; avisa que não se falará mais de máscaras e inicia o 2º parágrafo falando de algo tão grotesco quanto.

Em quase toda a fala que antecede o discurso do narrador há uma constatação que logo é quebrada por uma conjunção que dá início a um 2º enunciado onde se evidência a réplica ao discurso  do outro: “...Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão” (Assis, 1997:659), “Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada” (Assis, 1997: 659).

Nos termos destacados a réplica implícita  do narrador  soa mais como um preenchimento à falta de informação do outro que parece desconhecer os sentimentos dos escravos para com  a escravidão e nesse momento já não há uma    indignação do outro,  apenas uma lacuna a qual o narrador faz questão de preencher.

O conto é finalizado com um discurso direto: “- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração” (Assis, 1997: 667), só que esse discurso é emitido sem que  nenhuma das personagens (sua esposa, sua tia) pedisse-lhe contas do aborto que a escrava fujona, pega por Cândido Neves, sofrera. O discurso de Neves , então, é uma resposta ao discurso do outro, implícita na sua fala, que lhe cobra uma consciência do seu ato. E para fugir da consciência, da responsabilidade  que o outro quer lhe imputar  ele replica que “nem todas as crianças vingam”, e isso acaba sendo um consolo para si. É uma justificativa para o que o outro pensa dele e para sua própria consciência.

Além dessa expressiva “voz do outro” que se faz ouvir dentro das “réplicas” no discurso do narrador, é possível verificar também uma determinada voz social . A linguagem travestida na voz do  narrador  de forma às vezes dissimulada, mas principalmente irônica, é uma linguagem que se torna , muitas vezes, pluringüisticamente ambígua. Seus acentos irônicos, podem ser lidos de acordo com uma determinada posição sócio-ideológica e seu período histórico.

Segundo Bakhtin:

 

“...Essa linguagem comumente falada e escrita pela média de um dado ambiente, é tomada pelo autor precisamente como a opinião corrente,  a atitude verbal para com seres e coisas, normal para um  certo meio social, o ponto de vista e o juízo corrente. De uma forma ou de outra, o autor se afasta dessa linguagem comum, põe-se de lado e objetiva-a, obrigando-a a que suas intenções se refranjam através do meio e da opinião pública ( sempre superficial e freqüentemente hipócrita), encarnado em sua linguagem” (Bakhtin, 1988: 108).

 

A linguagem usada pelo narrador, apesar dos acentos irônicos, pode ser considerada  como  a “opinião corrente”, principalmente se levarmos em consideração, por exemplo, um leitor que seja escravocrata.  Nesse caso, a  voz social do texto  explica e  justifica a existência da escravidão pois em nenhum momento do texto fica explícito que o narrador condene esse regime, e este discurso acaba vindo de encontro aos defensores da escravidão, visto que o narrador coloca certos  fatos referentes à escravidão de forma simples e como algo muito natural. E isto é perigoso, pois quem concorda com ela lerá esses fatos sob um ângulo onde tudo lhe parecerá natural (é será, pois ele não verá nada de anormal nas informações dadas e o que estiver implícito não lhe convém). Por isso, o plurilingüismo, apesar de presente, às vezes soa extremamente  ambíguo no texto, mas segundo Bakhtin “o discurso bivocal na prosa  é  ambíguo” (1988:130).

Bakhtin também diz que:

 

“O plurilingüismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução), é o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial.(. . .) Nesse discurso há duas vozes , dois sentidos, duas expressões(1988:133).

 

Mediante as colocações de Bakhtin, podemos entender que no conto “Pai Contra Mãe  há, de fato, ironicamente parodiadas algumas  linguagens sociais: de um lado aqueles que mascaram sua posição ideológica, por outro lado, a linguagem social dos escravocratas e antiescravocratas. O plurilingüismo no texto oscila de uma voz social para outra, sem que uma se sobreponha a outra. Na maioria das  vezes , confundem-se.

Em princípio, através da voz do narrador , na “voz do outro” ouve-se a voz social do autor  que não assume uma posição ideológica e, desta forma, possivelmente eximindo-se de  um comprometimento social “não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício”(Assis, 1997:659). No segundo caso, porém, quando o narrador usa a linguagem dos escravocratas justificando a existência de determinados objetos e de atitudes, está mais evidente , devido à ironia, as intenções do autor  que  são de  crítica a esta instituição social:

 

 “Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém na casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói” (Assis, 1997: 659).

 

Dentro do discurso  do outro a linguagem é dos escravocratas, mas nas entrelinhas do mesmo discurso a linguagem do outro  ironiza aquele discurso, afinal, quem gosta de escravidão? Da mesma forma, quem gosta de apanhar ?  Só pode ter respostas para tais perguntas a quem convenha  tal situação. E afinal, acreditar que os escravos gostavam de apanhar  ou de ser escravo só poderia  ser conveniente  aos donos deles. Era espiritualmente mais tranqüilizador.

E é nas lacunas entre o acento irônico do narrador “e nem todos”  dialógica a voz do outro que a voz social  escravocrata pode ser lida. Aqui é como se soasse uma crítica  aos escravos que  porventura não gostassem de apanhar ( e como se por ser escravo, devesse-se gostar de apanhar) – discurso escravocrata. Por outro lado, no mesmo discurso encontra-se sim um discurso antiescravocrata. Afinal, quem gostaria de apanhar?  Ou ainda  uma revelação de que  nem todos os escravos eram submissos ao açoite e a sua situação inferiorizada. Nota-se no acento irônico do termo “também”, a voz social do autor, dissimulada no discurso do narrador que critica a atitude dos  donos de escravos que visam ao lucro, esquecendo-se do ser humano e que, justamente por isso, acabam sendo castigados também, pois “danificar” o escravo era o mesmo que danificar dinheiro e sofrer as conseqüências  por isso.

Entre  outros, ainda fica evidente o discurso antiescravocrata nos termos: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social (. . .), e alguma vez o cruel” (Assis, 1997:659).  Além das palavras ressaltadas,  onde se encontra uma crítica à escravidão, o termo “alguma vez”, expresso pela voz do “outro”, ameniza  esse discurso antiescravocrata.

Bakhtin diz que:

 

“Uma outra forma de introdução e organização do plurilingüismo no romance, utilizada por todos sem exceção, é a do discurso dos personagens.As palavras dos personagens, possuindo no romance, de uma forma ou de outra, autonomia semântico-verbal, perspectiva própria, sendo palavras de outrem numa linguagem de outrem, também podem refratar as intenções do autor e, conseqüentemente, podem ser, em certa medida, a segunda linguagem do autor” (Bakhtin, 1993:119).

 

Sendo assim, ao introduzir o discurso direto “Nem todas as crianças vingam” (Assis, 1997:661), pode-se subentender aqui um discurso humanista, filosófico e antiescravocrata. Todavia, quem profere esse discurso é Cândido Neves que , na falta de  emprego e capacidade para ofício melhor, arrumou-se como “caçador de escravos fugidos”. Levando-se em consideração a situação econômica e intelectual do mesmo,  conclui-se que a voz dada a Cândido  Neves  poderia ser a voz do próprio autor que , sem argumentos para a atitude escravocrata  de Cândido Neves, lança mão de teoria filosófica para a justificar. Só que ao fazê-lo  uma outra voz social se evidencia que é a antiescravocrata e humanista. Antiescravocrata e humanista porque ao dizer que  nem todas as crianças sobrevivem é preciso considerar que no caso quem não sobreviveu foi a criança da mãe escrava, não é qualquer criança, é uma criança específica, filha de  uma pessoa específica e isso não deixa  de ser uma crítica a essa seleção “aparentemente” natural, pois viver é um direito de todos e não de alguns.

Quando  o narrador conclui: “bateu-lhe o coração” (Assis, 1997: 661), o enquadramento dado por ele pode ser uma posição de defesa a Cândido Neves, que é colocado no texto dividido entre dois discursos, pois esse narrador o “obriga” a participar do discurso escravocrata (quando trabalha para o sistema) e humanista, pois além de lhe dar um coração  dá-lhe voz para   se justificar “Nem todas as crianças vingam.”

Em outro acento irônico, a voz do outro, no discurso do outro se revela machista: “Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente” (Assis, 1997: 660).  O termo “naturalmente”, soa como um conhecimento específico dos anseios femininos – o casamento. Expresso de forma irônica através da voz do narrador, mas que refrata a voz irônica  do autor , o  termo  soa como uma crítica social, ou ainda apenas como uma constatação machista ao se referir à mulher. Essas percepções da voz do outro assim como das interpretações dadas Bakhtin explica:

 

“Percebemos nitidamente cada momento da narração em dois planos: no plano do narrador, na sua perspectiva expressiva e semântico-objetal, e no plano do autor que fala de modo refratado nessa  narração e através dela. Nós adivinhamos os acentos do autor que se encontram tanto no objeto da narração como nela própria e na representação do narrador, que se revela no seu processo. Não perceber esse segundo  plano intencionalmente acentuado do autor  significa não compreender a obra” (Bakhtin, 1993: 119).

 

E não “compreender” qualquer obra é inconcebível. Então, dialogismo e plurilingüismo   consegue  abrir  caminhos para  análises mais amplas que possibilitam ver além do texto. Explorá-los na literatura é inesgotável e valioso, visto que , o universo bivocal é  dialógica e plurilingüisticamente amplo e significativo.   

 

RESUMO: Este texto analisa o discurso bivocal no conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis, de acordo com Bakhtin. O objetivo é identificar as diferentes vozes sociais no texto.

 

PALAVRAS-CHAVE: Bakhtin;discurso; vozes sociais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASSIS, Machado de. Obra Completa – vol 2 . “Pai Contra Mãe”.Rio de   Janeiro : Nova Aguilar, 1997.

BAKHTIN, MIKHAIL. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de   Janeiro: Forense Universitária, 1981.

  -----. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et alii. São Paulo: UNESP, HUCITEC, 1988.