O
BIVOCALISMO DE BAKHTIN NO CONTO “PAI
CONTRA MÃE” DE MACHADO DE ASSIS
(THE BAKHTIN’S
DISCOURSE BIVOCAL IN THE SHORT
STORY “PAI CONTRA MÃE” OF MACHADO DE
ASSIS)
Sandra
Maria JOB.(Universidade Estadual de Londrina-UEL)
ABSTRACT:
This text analyses the bivocal discourse in the short story “Pai Contra Mãe” of
Machado de Assis, according to the Bakhtin. The objective is to identify
different voices that appearing in the text.
KEYWORDS:
Bakhtin;discourse;social voices.
Toda e qualquer análise
feita em uma determinada obra tende
sempre a trazer à tona uma nova luz e uma nova dimensão artística da mesma,
possibilitando várias interpretações e comprovando que, quando boa, ela é
sempre atual e imortal. Além disso, é através de uma dessas análises que
acabamos compreendendo um pouco mais a sociedade e o povo deste ou daquele
período histórico. Atualmente, duas das formas de análises muito discutidas são
o dialogismo e o plurilingüismo.Em ambos a característica marcante é a presença
da “voz do outro”.
Nos dois casos, pela complexidade quanto à forma de se
apresentarem no discurso, cabem explicações mais longas e detalhadas , porém o
objetivo não é elucidar nem conceituar dialogismo e plurilingüismo, mas
analisar como se apresentam no conto
“Pai contra mãe” de Machado de Assis.
“Pai contra mãe” encontra-se
na coletânea Relíquias de Casa Velha,
publicado em 1906, dois anos antes da morte do autor , e relata a história de
Cândido Neves, cuja profissão é “pegar escravos fugidos” (Assis,1997:159). A narração
é feita em 3ª pessoa e o narrador em Machado de Assis dispensa quaisquer comentários
dados os inúmeros estudos a respeito do mesmo, porém é nesse mesmo
narrador que se pode verificar o
bivocalismo tão trabalhado por
Bakhtin. Para aplicação usaremos algumas frases do conto e essas frases, na sua
maioria, são orações coordenadas. Essas
orações, à exceção de uma, são todas proferidas pelo narrador.
No discurso, a voz do
narrador se apresenta aparentemente sob uma linguagem uniforme, cuja única finalidade e colocar o leitor a par de fatos que antecedem e culminam no clímax do conto, ao
contrário da “voz do outro” que cruzada com a do narrador, evidencia-se da
última pelos acentos nos termos sintáticos carregados de ironia. A “voz do
outro” é plurilingüisticamente significativa; ora ela se apresentará fazendo uso da linguagem social escravocrata, ora antiescravocrata,
humanista e até mesmo machista.
O bivocalismo inicia-se a partir da frase contínua a que introduz o narrador: “Não cito alguns
aparelhos senão por se ligarem a certo ofício” (Assis, 1997:659). Nessa
oração subordinada a voz do narrador se
rende a “voz do outro” que o questiona e possivelmente até o condene pelo que
será dito. Mediante essa “voz” que o narrador antecipa, ele sutilmente já se
defende para se eximir de qualquer transgressão, ou de uma má interpretação
pelo “outro”. É como se alguém lhe tivesse dito “por que falar disso?”, ou
ainda “esqueça, não vamos mais falar nisso” e ele à guisa de explicação “ não,
eu só falarei por se tratar de um trabalho qualquer”. Porém, nessa aparente voz
do narrador estaria subentendida a voz do próprio autor que, usando da
dependência das orações entre si, ligadas pelo “senão” que condiciona a
primeira oração a segunda, justifica a sua atitude perante as colocações posteriores dentro do texto
além de distanciá-lo do assunto a ser
tratado. O uso do pronome indefinido “certo” e do substantivo “ofício” marcam ainda mais a posição de
distanciamento que o autor quer manter para com o assunto a ser tratado,
pois “certo” não particulariza e “ofício” generaliza e tem uma denotação não
depreciativa.
Na seqüência, esse mesmo narrador que quer chocar ou ainda ouvir a indignação
do outro diz: “Era grotesca tal máscara” (Assis, 1997:659), e quando a voz do
outro o interpela indignado, exaltado , o narrador ameniza : “mas a ordem
social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”
(Assis, 1997:659). No intento de calar as indagações espantosas e/ou incrédulas da voz do outro ou ainda
justificar a sua crueza ao relatar tais
fatos, continua : “os funileiros as
tinham penduradas, à venda, na porta das lojas” (Assis, 1997:659).E
explicitamente se dirige “a voz do
outro”: “Mas não cuidemos de máscaras” (Assis,1997: 659). Afinal, o que o
narrador quer que o outro leia nas entrelinhas do seu discurso e que esse assunto é nada, banal e que em
nada o atinge, porém sua intenção
inicial, que era chocar o outro, ele
fez e obteve resultados mediante suas réplicas
abertas em resposta às replicas veladas do “outro”.
Fato curioso e que o
narrador tem consciência da voz do outro. Fala, não influenciado pala voz do
outro, mas para a voz e desespero do outro a quem ele não permite
interferências e para quem ele sempre tem uma réplica velada. É um narrador
bivocal que não se deixa “tocar” pela voz do outro, antes, quer “tocá-lo”.
Na conclusão do 2º
parágrafo, o narrador; além de incluir
na sua fala a voz do outro “Mas não cuidemos..”, nós não cuidemos, ele e o outro; avisa que não se falará
mais de máscaras e inicia o 2º parágrafo falando de algo tão grotesco quanto.
Em quase toda a fala que
antecede o discurso do narrador há uma constatação que logo é quebrada por uma
conjunção que dá início a um 2º enunciado onde se evidência a réplica ao
discurso do outro: “...Eram muitos, e
nem todos gostavam da escravidão” (Assis, 1997:659), “Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”
(Assis, 1997: 659).
Nos termos destacados a
réplica implícita do narrador soa mais como um preenchimento à falta de
informação do outro que parece desconhecer os sentimentos dos escravos para
com a escravidão e nesse momento já não
há uma indignação do outro, apenas uma lacuna a qual o narrador faz
questão de preencher.
O conto é finalizado com um
discurso direto: “- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração” (Assis,
1997: 667), só que esse discurso é emitido sem que nenhuma das personagens (sua esposa, sua tia) pedisse-lhe contas
do aborto que a escrava fujona, pega por Cândido Neves, sofrera. O discurso de
Neves , então, é uma resposta ao discurso do outro, implícita na sua fala, que
lhe cobra uma consciência do seu ato. E para fugir da consciência, da
responsabilidade que o outro quer lhe
imputar ele replica que “nem todas as
crianças vingam”, e isso acaba sendo um consolo para si. É uma justificativa
para o que o outro pensa dele e para sua própria consciência.
Além dessa expressiva “voz
do outro” que se faz ouvir dentro das “réplicas” no discurso do narrador, é possível
verificar também uma determinada voz social . A linguagem travestida na voz
do narrador de forma às vezes dissimulada, mas principalmente irônica, é uma
linguagem que se torna , muitas vezes, pluringüisticamente ambígua. Seus
acentos irônicos, podem ser lidos de acordo com uma determinada posição
sócio-ideológica e seu período histórico.
Segundo Bakhtin:
“...Essa linguagem comumente
falada e escrita pela média de um dado ambiente, é tomada pelo autor
precisamente como a opinião corrente,
a atitude verbal para com seres e coisas, normal para um certo meio social, o ponto de vista e o
juízo corrente. De uma forma ou de outra, o autor se afasta dessa linguagem
comum, põe-se de lado e objetiva-a, obrigando-a a que suas intenções se
refranjam através do meio e da opinião pública ( sempre superficial e
freqüentemente hipócrita), encarnado em sua linguagem” (Bakhtin, 1988: 108).
A linguagem usada pelo
narrador, apesar dos acentos irônicos, pode ser considerada como
a “opinião corrente”, principalmente se levarmos em consideração, por
exemplo, um leitor que seja escravocrata.
Nesse caso, a voz social do
texto explica e justifica a existência da escravidão pois em
nenhum momento do texto fica explícito que o narrador condene esse regime, e
este discurso acaba vindo de encontro aos defensores da escravidão, visto que o
narrador coloca certos fatos referentes
à escravidão de forma simples e como algo muito natural. E isto é perigoso,
pois quem concorda com ela lerá esses fatos sob um ângulo onde tudo lhe
parecerá natural (é será, pois ele não verá nada de anormal nas informações
dadas e o que estiver implícito não lhe convém). Por isso, o plurilingüismo,
apesar de presente, às vezes soa extremamente
ambíguo no texto, mas segundo Bakhtin “o discurso bivocal na prosa é
ambíguo” (1988:130).
Bakhtin também diz que:
“O
plurilingüismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua
introdução), é o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para
refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma
palavra bivocal especial.(. . .) Nesse discurso há duas vozes , dois sentidos,
duas expressões(1988:133).
Mediante as colocações de
Bakhtin, podemos entender que no conto “Pai Contra Mãe” há, de fato, ironicamente parodiadas
algumas linguagens sociais: de um lado
aqueles que mascaram sua posição ideológica, por outro lado, a linguagem social
dos escravocratas e antiescravocratas. O plurilingüismo no texto oscila de uma
voz social para outra, sem que uma se sobreponha a outra. Na maioria das vezes , confundem-se.
Em princípio, através da voz
do narrador , na “voz do outro” ouve-se a voz social do autor que não assume uma posição ideológica e,
desta forma, possivelmente eximindo-se de
um comprometimento social “não cito alguns aparelhos senão por se
ligarem a certo ofício”(Assis, 1997:659). No segundo caso, porém, quando
o narrador usa a linguagem dos escravocratas justificando a existência de
determinados objetos e de atitudes, está mais evidente , devido à ironia, as
intenções do autor que são de
crítica a esta instituição social:
“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e
nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada,
e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida; havia alguém na casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não
era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque
dinheiro também dói” (Assis, 1997: 659).
Dentro do discurso do outro a linguagem é dos escravocratas,
mas nas entrelinhas do mesmo discurso a linguagem do outro ironiza aquele discurso, afinal, quem gosta
de escravidão? Da mesma forma, quem gosta de apanhar ? Só pode ter respostas para tais perguntas a
quem convenha tal situação. E afinal,
acreditar que os escravos gostavam de apanhar
ou de ser escravo só poderia ser
conveniente aos donos deles. Era
espiritualmente mais tranqüilizador.
E é nas lacunas entre o
acento irônico do narrador “e nem todos”
dialógica a voz do outro que a voz social escravocrata pode ser lida. Aqui é como se soasse uma
crítica aos escravos que porventura não gostassem de apanhar ( e como
se por ser escravo, devesse-se gostar de apanhar) – discurso escravocrata. Por
outro lado, no mesmo discurso encontra-se sim um discurso antiescravocrata.
Afinal, quem gostaria de apanhar? Ou
ainda uma revelação de que nem todos os escravos eram submissos ao
açoite e a sua situação inferiorizada. Nota-se no acento irônico do termo “também”,
a voz social do autor, dissimulada no discurso do narrador que critica a
atitude dos donos de escravos que visam
ao lucro, esquecendo-se do ser humano e que, justamente por isso, acabam sendo
castigados também, pois “danificar” o escravo era o mesmo que danificar
dinheiro e sofrer as conseqüências por
isso.
Entre outros, ainda fica evidente o discurso
antiescravocrata nos termos: “Era grotesca tal máscara, mas a ordem
social (. . .), e alguma vez o cruel” (Assis, 1997:659). Além das palavras ressaltadas, onde se encontra uma crítica à escravidão, o
termo “alguma vez”, expresso pela voz do “outro”, ameniza esse discurso antiescravocrata.
Bakhtin diz que:
“Uma outra forma de
introdução e organização do plurilingüismo no romance, utilizada por todos sem
exceção, é a do discurso dos personagens.As palavras dos personagens, possuindo
no romance, de uma forma ou de outra, autonomia semântico-verbal, perspectiva
própria, sendo palavras de outrem numa linguagem de outrem, também podem
refratar as intenções do autor e, conseqüentemente, podem ser, em certa medida,
a segunda linguagem do autor” (Bakhtin, 1993:119).
Sendo assim, ao introduzir o
discurso direto “Nem todas as crianças vingam” (Assis, 1997:661), pode-se
subentender aqui um discurso humanista, filosófico e antiescravocrata. Todavia,
quem profere esse discurso é Cândido Neves que , na falta de emprego e capacidade para ofício melhor,
arrumou-se como “caçador de escravos fugidos”. Levando-se em consideração a
situação econômica e intelectual do mesmo,
conclui-se que a voz dada a Cândido
Neves poderia ser a voz do
próprio autor que , sem argumentos para a atitude escravocrata de Cândido Neves, lança mão de teoria
filosófica para a justificar. Só que ao fazê-lo uma outra voz social se evidencia que é a antiescravocrata e
humanista. Antiescravocrata e humanista porque ao dizer que nem todas as crianças sobrevivem é preciso
considerar que no caso quem não sobreviveu foi a criança da mãe escrava, não é
qualquer criança, é uma criança específica, filha de uma pessoa específica e isso não deixa de ser uma crítica a essa seleção “aparentemente” natural, pois
viver é um direito de todos e não de alguns.
Quando o narrador conclui: “bateu-lhe o coração”
(Assis, 1997: 661), o enquadramento dado por ele pode ser uma posição de defesa
a Cândido Neves, que é colocado no texto dividido entre dois discursos, pois
esse narrador o “obriga” a participar do discurso escravocrata (quando trabalha
para o sistema) e humanista, pois além de lhe dar um coração dá-lhe voz para se justificar “Nem todas as crianças vingam.”
Em outro acento irônico, a
voz do outro, no discurso do outro se revela machista: “Talvez nem soubesse o
nome de muitos. Queria casar, naturalmente” (Assis, 1997: 660). O termo “naturalmente”, soa como um
conhecimento específico dos anseios femininos – o casamento. Expresso de forma
irônica através da voz do narrador, mas que refrata a voz irônica do autor , o termo soa como uma
crítica social, ou ainda apenas como uma constatação machista ao se referir à
mulher. Essas percepções da voz do outro assim como das interpretações dadas
Bakhtin explica:
“Percebemos nitidamente cada
momento da narração em dois planos: no plano do narrador, na sua perspectiva
expressiva e semântico-objetal, e no plano do autor que fala de modo refratado
nessa narração e através dela. Nós
adivinhamos os acentos do autor que se encontram tanto no objeto da narração
como nela própria e na representação do narrador, que se revela no seu
processo. Não perceber esse segundo plano
intencionalmente acentuado do autor
significa não compreender a obra” (Bakhtin, 1993: 119).
E não “compreender” qualquer
obra é inconcebível. Então, dialogismo e plurilingüismo consegue
abrir caminhos para análises mais amplas que possibilitam ver
além do texto. Explorá-los na literatura é inesgotável e valioso, visto que , o
universo bivocal é dialógica e
plurilingüisticamente amplo e significativo.
RESUMO: Este texto analisa o discurso bivocal no
conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis, de acordo com Bakhtin. O objetivo é
identificar as diferentes vozes sociais no texto.
PALAVRAS-CHAVE: Bakhtin;discurso; vozes sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS,
Machado de. Obra Completa – vol 2 . “Pai Contra Mãe”.Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1997.
BAKHTIN,
MIKHAIL. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro: Forense Universitária,
1981.
-----. Questões de Literatura e de
Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et alii. São Paulo:
UNESP, HUCITEC, 1988.