A CAMINHO DA PRODUÇÃO DO TEXTO DISSERTATIVO NO ENSINO FUNDAMENTAL

(ON THE WAY TO PRODUCE ARGUMENTATIVE TEXTS AT PRIMARY SCHOOL)

 

Adriana FISCHER (Universidade Federal de Santa Catarina)

 

 

ABSTRACT: The production of argumentative texts at primary school is still a restrictive activity. Because of this fact, a work with this discursive genre  is proposed in a 4th grade class. The aims, related to the students,  are: to develop argumentative capacities and to become  subjects/authors of argumentative texts.

 

KEYWORDS: argumentation; interaction; writing production; children.

 

1. Introdução: a importância do trabalho com textos dissertativos em séries iniciais

 

O processo de produção de textos no Ensino Fundamental, bem como nos diversos níveis de ensino, tem como objetivo a inserção dos alunos num contexto dinâmico de manifestações verbais constituídas nas interações sociais. Estas, por sua vez, caracterizam-se, fundamentalmente, pela argumentatividade. Logo, conforme Koch (1999), sendo cada indivíduo dotado de razão e vontade, está constantemente avaliando, julgando, criticando, isto é, formando juízos de valor. Assim, por meio do discurso oral ou escrito, busca-se influir sobre o comportamento de outros indivíduos ou fazer com que compartilhem das mesmas opiniões. Por esta razão, o ato de argumentar, ou seja, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões institui um ato lingüístico fundamental na vida de cada indivíduo.

Nessa perspectiva, a introdução à produção de textos dissertativos em séries iniciais do Ensino Fundamental justifica-se porque pressupõe, da parte do aluno – autor do texto, um trabalho que garante a transferência de noções, lidas ou vividas, analisadas e depois transformadas e redistribuídas em um texto escrito, o qual seja capaz de influenciar o leitor, de alguma forma, ou alterando sua maneira de pensar, de agir ou persuadindo-o à adesão de um ponto de vista ou mesmo levando-o a tomar uma decisão[1].

Com o intuito de pesquisar e analisar o processo de produção de textos dissertativos produzidos por alunos em série iniciais, o espaço escolar escolhido para a realização da pesquisa foi a 4a série A, do Colégio de Aplicação da UFSC, em Florianópolis, composta por vinte e cinco alunos, no segundo semestre letivo de 2000. Optou-se por trabalhar com esta classe, pois estava inserida num projeto sócio-construtivista da linguagem intitulado “ Um caminho diferente para aprender a ler e a escrever”.

Portanto, para que os alunos sejam orientados a se assumirem autores de seus textos dissertativos, faz-se necessário que condições pedagógicas favoráveis sejam proporcionadas e orientações lingüísticas adequadas sejam realizadas no espaço de sala de aula. É muito importante, conforme Leite e Vallim (2000:192) que os alunos tenham contato com diferentes textos dissertativos através da leitura, realizem o exercício de elaboração escrita desse gênero discursivo, tenham acesso a informações diversas acerca da proposta de trabalho, por intermédio da relação dialógica entre alunos, aluno-professor, aluno e outros profissionais. Assim, o comprometimento com as palavras se torna mais evidente através da formação de um ponto de vista revelado pelo posicionamento crítico assumido diante de diversas situações de interação. Conseqüentemente, o ato de argumentar passará a simbolizar a luta com palavras, em busca da igualdade de oportunidades numa sociedade que se diz igualitária, mas que é, ao mesmo tempo, excludente. 

 

2. Linguagem e produção de textos dissertativos: abordagens teóricas

 

                A produção textual, concebida sob a ótica das teorias discursivo-interacionistas da linguagem, simboliza uma atividade realizada por sujeitos sociais que na interação buscam a realização de algum fim. Dessa forma, de acordo com Bakhtin (1986), a interação verbal entre interlocutores, viabilizada através da enunciação, representa o princípio fundador da linguagem e possui, fundamentalmente, caráter dialógico. Nesta perspectiva, toda enunciação é um diálogo e é o produto da interação de indivíduos socialmente organizados, seja ela um único ato de fala determinado por uma situação imediata ou um contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma comunidade lingüística.

                As contribuições de Bakhtin estendem-se à compreensão do complexo sistema de signos: o texto. Este, por sua vez, constitui um enunciado e para isso requer dois fatores determinantes (1997:330): seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto. As relações de sentido, logo, são estabelecidas no texto pela articulação de discursos da língua, os quais possuem um princípio dialógico inerente a si mesmos. Isso se deve, basicamente, a três ocorrências: a enunciação é determinada por uma orientação social; desde o início, é elaborada em função do outro, em conseqüência, visa à resposta, uma compreensão responsiva ativa e, por fim,  relaciona-se com outros enunciados -  é essencialmente polifônica.

Outra importante abordagem de Bakhtin para melhor entendimento do texto (enquanto enunciado -  produto da enunciação) diz respeito aos gêneros do discurso. Segundo ele (1997:284-5), uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições específicas, para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua.  Dessa forma, gêneros são classificados como primários e secundários, dependendo das circunstâncias de uma comunicação menos ou mais complexa. O texto dissertativo, por sua vez, é abordado nesta pesquisa, como um gênero secundário, mas absorve, também, os gêneros primários de diferentes espécies constituídos na comunicação verbal espontânea.

Outras discussões sobre gêneros do discurso são realizadas por Martin (1990). Este autor, através de pesquisas em escolas australianas, revela que crianças de séries iniciais têm pouco contato com a escrita factual, a qual aponta para a utilização da argumentação escrita, reveladora de posicionamentos críticos, na atividade de produção de textos factuais. Para este autor, a narrativa assume lugar de destaque entre crianças desse nível de ensino. O motivo dessa prática é que muitas pessoas ficam espantadas com o aspecto impessoal da escrita e tentam encorajar as crianças a escrever de forma mais expressiva. Outra causa do trabalho restrito com gêneros factuais é a ideologia latente que se opera sobre as atitudes adotadas pela grande parte da sociedade em relação às crianças. Em conseqüência deste quadro de omissões, Martin (1990:63) propõe que as escolas realizem um trabalho consciente com a escrita de textos, não só narrativos, mas também escritas factuais que levem o aluno à compreensão, discussão e confronto com o mundo no qual ele está engajado. 

Dolz (1995) também realiza estudos com crianças de 11 e 12 anos, a fim de verificar os efeitos de um ensino sistemático e intensivo do discurso argumentativo. Uma das propostas realizadas, na escola, com essas crianças é o trabalho acerca de um contexto de estratégias argumentativas e situações interativas. Resultados desta e outras propostas, desenvolvidas ao longo da pesquisa experimental realizada por ele, revelam que as crianças demonstram evoluções concernentes à sustentação de argumentos, reconhecimento de interlocutores para os textos, negociação com argumentos contrários e uso de um certo número de unidades lingüísticas específicas aos textos argumentativos.

Geraldi (1997:164) aponta a contribuição do professor como decisiva para que evoluções se operem na produção de textos dos alunos, pois não sendo um destinatário final dos textos que se produzem, faz-se interlocutor, constrói-se como co-autor que aponta caminhos possíveis para o aluno dizer o que quer dizer na forma que escolheu. Assim, à medida que se dá este convívio, aumentam as condições de escolha de estratégias de dizer, as quais resultam de relações interlocutivas do passado, de seus objetivos (razões para dizer) e das imagens de interlocutores.

Portanto, os resultados que se têm de diversos estudos e pesquisas apontam para a importância de se desenvolver a produção de textos dissertativos junto às crianças de séries iniciais. A habilidade de argumentar assume papel relevante na comunicação, seja oral ou escrita, pois consiste em um modo particular de interação humana. Segundo Perelman e Tyteca (1999:50) “o objetivo de toda argumentação é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção), ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno.” Nesta direção é que Martinez (1988: 91) concebe a dissertação como “um tipo de discurso através do qual procedemos a reflexões sobre coisas, onde as nossas opiniões são explicitadas e, sobretudo onde a nossa intenção é fazer com que o nosso interlocutor acate as nossas opiniões e desse modo se ponha do nosso lado nas considerações que tecemos.”

 

3. A pesquisa em sala de aula: algumas reflexões e conclusões preliminares

 

Através de uma metodologia caracterizada pelo estudo do tipo etnográfico, realizou-se a pesquisa na 4a série A do Colégio de Aplicação da UFSC, em 2000. Visando, ainda, implementar a produção de textos escritos junto aos alunos desta classe, foi realizada uma intervenção colaborativa que preconiza um trabalho conjunto com a professora regente e colaboração progressiva entre a pesquisadora e o grupo pesquisado.

Um forte motivo para introduzir a produção escrita de textos dissertativos nessa 4a série, por intermédio de intervenção colaborativa, foi a constatação, através de observações diárias, do domínio da forma discursiva dissertativa oral pelos alunos. Então, por que adiar este trabalho escrito para séries finais do Ensino Fundamental? Conforme depoimentos da professora regente: os alunos preferem os textos narrativos, onde eles narram o acontecimento. Também não trabalhei assim com eles o narrativo tem essa e essa procedência e o texto dissertativo tem essa e essa e assim por diante. E a dificuldade deles nos outros tipos de textos é maior. Pra mim também a maior facilidade é o texto narrativo. Através do posicionamento da professora, compreende-se que a insegurança e a falta de informação a respeito da produção de textos dissertativos eram fatores claros para abdicar deste trabalho.

Conseqüentemente, procurando oferecer condições de produção aos textos dissertativos junto aos alunos, foram realizadas, primeiramente, diferentes tarefas. Destacam-se: atividades de leitura, reflexão e análise de pequenos textos em busca da tese central e argumentos presentes; elaboração de argumentos escritos, com vistas à realização de um debate político, entre alunos, e posterior votação; exercício de construção de esquemas, com o objetivo de guiar os alunos na formulação de delimitações de um assunto a serem discutidas num texto escrito; leitura de alguns textos de enciclopédias e revistas, a fim de analisarem a configuração de textos: título, subtítulos, gravuras, gráficos etc., a qual facilita a compreensão dos leitores e, por fim, ordenação lógica de parágrafos de um texto intitulado “História da escrita”, no intuito de que os alunos localizassem expressões – pistas lingüísticas – deixadas pelo autor do texto, para a compreensão da evolução histórica da escrita e, assim, poderem ordenar cronologicamente os parágrafos.

Realizada esta trajetória inicial com os alunos, quatro propostas de produção de textos dissertativos foram desenvolvidas. A primeira, um texto evidenciando o ponto de vista e argumentos críticos do aluno acerca de um notícia atual, a qual foi escolhida e lida pelo próprio aluno. Vale ressaltar que já era atividade semanal, para os alunos da 4a série A, a exposição oral sobre um acontecimento atual do Brasil ou do mundo. A segunda proposta foi a produção de um texto revelando a evolução histórica de alguma descoberta humana. Para isso, a tarefa de cada aluno, foi, inicialmente, pesquisar e ler sobre um tema do próprio interesse, para então ter informações e condições para produzir um texto dissertativo. A terceira proposta foi uma resenha crítica sobre o filme “Os Batutinhas” proposto pela bibliotecária da escola. Anterior a esta produção escrita foram realizadas  leitura e análise de uma resenha crítica, intitulada “Cadeiras Vazias”, do autor Sérgio Rizzo. A última proposta foi um texto argumentativo, assim denominado, pois versava sobre um tema polêmico – violência – apresentando, dessa forma, pontos de vista contrários na mesma produção. Para viabilizar as discussões sobre este tema, foi feito, inicialmente, um debate coordenado por um policial. Assim, os alunos tiveram oportunidades de participarem ativamente das discussões. É importante destacar que atividades coletivas de reescrita foram desenvolvidas, a fim de orientar, de forma mais objetiva e diretiva, a reelaboração dos textos produzidos pelos alunos. Também, foram estabelecidos interlocutores reais para a produção de cada um dos quatro textos realizados durante a intervenção colaborativa – decisão esta que muito impulsionou os alunos.

As produções dos quatro textos dissertativos, na 4a série A do Colégio de Aplicação da UFSC, apontam para algumas constatações iniciais. A afinidade com o ato de narrar é explícita se comparada com a atividade da argumentação. Como constata Dolz (1995), a redução de atividades lingüísticas aos textos narrativos e descritivos, nas séries iniciais do ensino fundamental, justifica-se pela hipótese que há uma sucessão gradativa para o ensino desses gêneros discursivos. Desta forma, é adiado o trabalho com textos dissertativos escritos. Apesar da produção freqüente de textos narrativos, os alunos reagiram, na maior parte das vezes, de maneira positiva diante de atividades e propostas voltadas à produção de textos dissertativos. Porém, em muitos momentos, eram evidenciadas certas atitudes de resistência à realização dos trabalhos, provavelmente pela insegurança diante de um novo objeto (texto dissertativo), pela falta de conhecimento e por terem internalizadas muitas concepções sobre a produção de textos referentes a exigências meramente escolares.

Os textos produzidos demonstram ser coerentes às situações comunicativas propostas, ou seja, eram adequados às situações específicas de interação. Por exemplo, nos textos sobre o tema polêmico “violência” é evidente o posicionamento crítico dos alunos, apesar de muitos revelarem dificuldades em elaborar argumentos contrários ao próprio ponto de vista - contra-argumentos –  conforme a proposta de produção deste texto. Confirma-se, por sua vez, que a necessidade de convencer e/ou persuadir um interlocutor representa um importante objetivo para a produção de textos dissertativos, distanciando esta atividade escrita de textos narrativos e da existência de um só destinatário: o professor.

Também é possível constatar que a organização do texto dissertativo se torna uma atividade mais objetiva, coesa e coerente para os alunos, se condições de produção forem favoráveis para que eles realizem escolhas de diferentes estratégias de dizer – procedimentos lingüísticos, a fim de sustentar uma afirmação, obter a adesão dos interlocutores e/ou justificar uma tomada de posição. Assim, as participações dos alunos, nas atividades precedentes  à primeira versão dos textos (leitura e análise de textos, debate oral, por exemplo) e, principalmente, à reescrita dos textos, no tocante aos aspectos discursivos, configuracionais e lingüísticos, foram decisivas para determinar as escolhas específicas realizadas por cada aluno. Revelam-se, ao longo do processo, marcas de um maior comprometimento dos alunos com seus dizeres, em que esses sujeitos se assumem autores de seus textos dissertativos. A partir dessa tomada de posição, por parte dos alunos, é possível inferir que a atividade de argumentação escrita vai sendo ampliada e qualificada por intermédio de novas experiências e conhecimentos, permitindo veicular, a cada texto dissertativo produzido, uma unidade de sentido. Nessa perspectiva, é confirmado que atividades com textos dissertativos escritos, já nas séries iniciais, neste caso de pesquisa – 4a série, possibilitam ao aluno expor o ponto de vista e assumir uma posição crítica diante de fatos reais, desenvolvendo, assim, a capacidade argumentativa.

Apesar das reações e atitudes positivas, outras parecem caminhar numa direção contrária. Surgiam algumas reclamações quanto à atividade de reescrita dos textos. Mesmo havendo interação entre os alunos na atividade oral, precedente à reescrita, surgindo várias sugestões de mudanças para os textos, o trabalho com a linguagem escrita não seguiu esta mesma direção. Certamente, as formas de interação entre texto, professor e aluno desenvolvidas em sala de aula, no período anterior à intervenção colaborativa, contribuíram para essas atitudes controversas dos alunos.

Portanto, a afinidade, a experiência e a segurança com a produção de textos dissertativos serão ampliadas gradativamente nos alunos, através da continuidade desse trabalho nas séries seguintes, proporcionando a eles novas habilidades nessa atividade escrita.

 

RESUMO: A produção de textos dissertativos em séries iniciais do Ensino Fundamental  é ainda uma atividade restrita. Devido a esta constatação, propõe-se, então, um trabalho com esse gênero discursivo em uma 4a série, a fim de que os alunos desenvolvam suas capacidades argumentativas e se assumam sujeitos/autores de seus textos dissertativos.

 

PALAVRAS-CHAVE: argumentação; interação; produção escrita; crianças.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAKTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem.  São Paulo: Hucitec, 1986.

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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

 



[1] A importância do trabalho com textos dissertativos, mencionada neste parágrafo, é ressaltada por Vigner apud Galvez et al. (1997:118).