"INÊS DE CAMÕES": UMA PRESENÇA RITUALÍSTICA NA POESIA BRASILEIRA

 

Lúcia Correia Marques de Miranda MOREIRA (Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Unesp)

 

 

ABSTRACT:  The intertextuality and mith process of a specific language that reveals the ritualistic celebration is worked here by a communication between the episode of "Inês de Castro", Os Lusíadas (Camões) and the Alceu Valença's lyric "Romance da Bela Inês".

 

KEYWORDS: intertextuality; literary mith, ritualistic stature.

 

                O processo da intertextualidade não é uma novidade no panorama da criação literária. Um dos seus aspectos que suscita interesse é a roupagem variada que semelhante gesto criativo vai adquirindo aqui e ali, ao longo das manifestações literárias através dos tempos.

Ora, o que aqui se pretende é verificar uma manifestação intertextual em que se reconhece um diálogo entre o episódio de Inês de Castro d'Os Lusíadas, de Luís de Camões e o poema-canção de Alceu Valença, chamado "Romance da Bela Inês". Dentre outros poetas que também estabeleceram o mesmo diálogo, encontramos inusitadamente esta canção da música popular brasileira, demonstrando uma relação intertextual/ritualística com o episódio lírico d'Os Lusíadas. E é esta característica de ritual que orienta o nosso percurso de análise das relações dialógicas entre as duas criações literárias.

                Os traços básicos que cunharam os amores de Pedro e Inês na lenda foram o de um amor que não conhece barreiras, praticamente impossível de vivenciar, mas eterno. Tanto assim que se perpetuou no imaginário português (e não só) ao ponto de vir a transformar-se numa das representações do mito do amor para além da morte[1]. Camões toma este mote, já anteriormente tratado por outros poetas, e faz de Inês uma das mais belas e significativas representações daquele mito. É pelas palavras de Camões que o episódio adquire qualidades de verdade primeira, resposta a um dos medos primordiais do homem: a Morte como limitação do Tempo. Valorizando ao longo do poema o amor entre Pedro e Inês, o poeta depositou nele a força que simboliza a eternidade; é graças a esse sentimento que a morte física de Inês é suplantada pela memória que se terá dela.

Ao captar em Inês o elo entre o real e a fantasia, é que Camões demonstra um aspecto marcante da expressão poética: num golpe de lirismo que entrecorta (sem interromper) a epopéia, o poeta revitaliza e reitera o poder xamânico revelador da linguagem poética. Entendendo na poesia a possibilidade de ler as várias faces ocultas do Mundo, percebe-se no episódio camoniano de Inês uma projeção mítica que o perpetua e serve de suporte para leituras diversas entre si, no entanto unas no sentido, visto que unas na ritualização de um revisitar o tema inesiano.

            Através do episódio de Inês, Camões, numa perspectiva mitológica, revela de modo particular o mito do amor para além da morte. Encarado como se fosse um xamã, o poeta não cria o mito (já que estas narrativas são criações da Humanidade, da coletividade) antes o figurativiza, dando-lhe uma nova roupagem através da linguagem poética, à medida que lhe esclarece os mistérios para o universo literário. A criatividade do poeta luso não está, portanto, em inventar o mito, mas sim no modo pelo qual o revela. Através da linguagem poética, o episódio, que Camões resgata da tradição histórica e literária portuguesa, é caracterizado de modo que para a literatura (portuguesa e brasileira pelo menos) se torna um  “modelo, forma ou padrão original, segundo o qual alguma coisa é feita ou a partir do qual alguma coisa evolui”[2], numa palavra, torna-se um arquétipo.

No poema-canção de Alceu Valença, “Romance da Bela Inês”, a mulher de que ali se fala é uma Inês situada claramente num espaço e cor local diferentes da “Inês de Camões”. No entanto, a Inês de Alceu Valença, uma mulher de “peito operário”, cheia de sonhos libertadores e revolucionários, leva uma caracterização geral muito semelhante à de Camões. Ou seja, os fundamentos da “bela Inês” (Valença) são os mesmos da “linda Inês” (Camões). Curiosas são as imagens literárias de ambas as mulheres. A de Camões, mesmo caracterizada por uma delicadeza própria a uma dama da corte medieval, demonstra ser uma mulher frágil e corajosa. A Inês de Alceu Valença, também é indiscutivelmente corajosa, e apresenta uma delicadeza que se revela menos nos gestos e mais nos sentimentos. Ou seja, a mulher que aparece na canção de Valença reúne em sua caracterização a síntese estilizada de “Inês de Camões”. Enquanto Camões não economiza palavras na descrição dos atributos físicos e encantos pessoais de Inês, para depois descrever a ação dela, Valença faz um resumo de tudo isso, concentrando-se sobretudo na descrição do sentimento que move a Inês de seu poema-canção.

 

                               Camões                                                      Alceu Valença

 

Estavas, linda Inês, posta em sossego,                       Uma musa matriz de tantas músicas

De teus anos colhendo o doce fruito,                         melindrosa mulher e linda e única                                                                     

(...)                                                                              Como o lado da lua que se oculta 

No colo de alabastro que sustinha                              Escondia o mistério e a sedução.

As obras com que Amor matou de amores.

 

Note-se que onde Camões diz “Estavas, linda Inês, posta em sossego”, Valença confirma “melindrosa mulher e linda e única”. A “linda Inês” camoniana estando em sossego, colhendo o doce fruito da sua juventude apresenta encantos, que por trás da ingenuidade, escondem a sedução de ser senhora  das “obras” (seios) “com que Amor matou de amores”. Alceu Valença já sintetiza a imagem que Camões dá da mulher pura e delicada que oculta um grande poder de sedução. Apelando para a simbologia da Lua, Valença compara Inês ao astro que representa a pureza através da cor branca e o mistério oculto da sedução.

            A canção de Alceu Valença, além de nomear Inês, caracteriza-a por intermédio de símbolos que nos fazem reconhecer “Inês de Camões” nesta heroína de características latinas: “Comovida com a revolução de Guevara,/ Camilo e São Dimas, (...)”[3].

                O primeiro símbolo que aparece é um termo que traduz de modo claro a grande carga de significação mítica inerente a “Inês de Camões”: "Uma musa matriz de tantas músicas (grifo nosso). O poeta inicia o poema com este verso, o que já delineia uma musa especial, ou seja, mais adiante, ao chamá-la de “Bela Inês” (aspecto que de imediato nos remete a Camões: “linda Inês”) apenas confirma a quem se refere. Não é uma mulher qualquer, é Inês, “matriz de tantas músicas”. Pode-se dizer que a “Bela Inês” de Valença é uma mulher comum (“Bela Inês com seu peito de operário”) mas que traz em si a marca do nome que carrega. É Inês e é matriz, fato que a distingue:

 

O simbolismo do útero ou da matriz está universalmente ligado à           manifestação, à fecundidade da natureza e à regeneração espiritual.[4]

 

                 Também retorno guarda uma simbologia importante e pertinente. Há nele todo o simbolismo cósmico, todos os passados espirituais e símbólicos como o labirinto, a mandala e outros que significam o retorno ao princípio, à origem, ao centro. A volta, seja de que maneira for, ao poema camoniano, implica, portanto, na sua confirmação enquanto matriz, centro, origem, verdade primordial, em suma, mito poético.

                Cumpre ressaltar que, nos quatro primeiros versos, Valença faz uma síntese dos aspectos que caracterizam Inês e que em Camões se vão diluindo ao longo de todo o episódio. Na voz do poeta português, Inês é apresentada na estrofe 120 e, na seguinte, é cantado o amor que ela tem por Pedro; no discurso da heroína a D. Afonso, estrofes 126 a 129, reconhecem-se a coragem, a dignidade e o caráter materno da bela dama; nas estrofes que relatam a morte propriamente dita, estrofes 130 a 134, sobressai, mais uma vez, a beleza, a feminilidade, a sedução e a fragilidade da mulher; e, na estrofe 135, o das ninfas do Mondego, sobrepõe-se o poder significativo e representativo de uma mulher que, aparentemente impotente diante da trágica morte, se perpetua, definindo-se como um símbolo de origem, centro, matriz, verdade primordial.

                Ora, no poema de Alceu Valença, o que acontece é uma síntese de todos aqueles aspectos logo nos primeiros quatro versos da canção. Tudo se condensa nos termos simbólicos de lua e  matriz:

 

                            Camões                                                        Valença

Estavas, linda Inês, posta em sossego,          Uma musa matriz de tantas músicas

De teus anos colhendo o doce fruito             melindrosa mulher e linda e única.

(...)                                                                         Como o lado da lua que se oculta

                                                                              Escondia o mistério e a sedução.

Põe-me onde se use toda a feridade,

Entre leões e tigres, e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei

Ali, co amor intrínseco e vontade                          “melindrosa[5] mulher”          

Naquele por quem mouro, criarei                                    única

Estas relíquias suas que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste.

(...)

 

No colo de alabastro que sustinha

As obras com que Amor matou de amores                 mistério e sedução

Aquele que despois a fez Rainha,

(...)

 

Assim como a bonina, que cortada

Antes do tempo, foi cândida e bela                           linda e única

(...)

 

                No que diz respeito ao delineamento da mulher, dentro do poema, a lua traz a simbologia mais conhecida, muito comum no Romantismo, aquela que compara a mulher ao astro que simbolizava o mistério, a sedução e a pureza - aspecto que também encontramos em “Inês de Camões”. Além disso, a lua também é o símbolo da fertilidade, portanto do materno: “controla os planos cósmicos regidos pela lei do vir-a-ser cíclico: águas, chuva, vegetação, fertilidade...”[6]. Mas, ainda, numa abordagem mais ampla, tentando resgatar o caráter ritual do texto, a Lua apresenta uma significação que reitera a celebração do poema de Valença  reconhecendo em Inês um traço simbólico, de certa forma, sagrado:

 

Este eterno retorno às  suas formas iniciais,  esta  periodicidade  sem fim fazem com que a lua seja por excelência o astro  dos  ritmos da vida... (...) As sínteses  mentais tornadas possíveis pela revelação do ritmo lunar colocam em correspondência e unem realidades heterogêneas(...)[7]

                              

Assim, ao trazer a lua para o seu poema, comparando Inês a ela, Valença confirmou um dos aspectos fundamentais do mito: unir realidades heterogêneas através de uma celebração ritual. Vemos neste poema a evocação de “Inês de Camões” numa Inês que divide o espaço com uma realidade bem diversa da realidade daquela que lhe serve de paradigma. A mulher latina, operária e de espírito revolucionário, se identificou com a mulher medieval, no que ambas têm de traços arquetípicos.

 

RESUMO: Pretendemos observar a relação entre a intertextualidade e o processo mítico de uma linguagem que revela o solene e o comemorativo do ritual. Para tanto, será analisado o diálogo que se estabelece entre o episódio inesiano d'Os Lusíadas e o poema-canção de Alceu Valença, "Romance da Bela Inês".

 

PALAVRAS-CHAVE: intertextualidade; mito literário; presença ritualística.

 

 

ANEXO:

"Romance da Bela Inês"

Uma musa matriz de tantas músicas

melindrosa mulher e linda e única

como o lado da lua que se oculta

escondia o mistério e a sedução.

Comovida com a revolução de Guevara,

Camilo e São Dimas,

escutou meu espelho cristalino

viajou nosso sonho libertário.

Bela Inês com seu peito de operário

a burguesa que amava o capitão.

 

Acontece que a história não tem pressa

e o amor se conquista passo a passo

ciúme é a véspera do fracasso

e o fracasso provoca o desamor.

Bela Inês teve medo do condor

queimou cartas e lembranças do passado

e nessa guerra de Deus e do diabo

entre fogo cruzado desertou.

Bela Inês com seu peito de operário

não esconde o seu ar conservador.

 

(Mas) eu tenho um espelho cristalino

que uma baiana me mandou de Maceió

ele tem uma luz que me alumia

ao meio-dia clareia a luz do sol.

 

Apesar dos pesares não esquece nosso sonho real e atrevido

Bela Inês tem o peito dividido

entre o porto seguro e o além-mar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. (Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos)      

     5ed.Porto: Porto Editora, s/d.

CHEVALIER, Jean e CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 10 ed. Rio de

      Janeiro: José Olympio Editora, 1996.

ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, 1981.

FERRARA, Lucrécia D'Aléssio. A estratégia dos signos. 2ed. São Paulo: Perspectiva,

     1986.

KRISTEVA, Julia. Recherches pour une Sémanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1969.

SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 13 ed. Lisboa: Europa-

     América, 1989.

SHAW, Harry. Dicionário de Termos Literários. Lisboa: Dom Quixote, 1978.

VALENÇA, Alceu. "O Romance da Bela Inês". Acervo Especial. BMG Ariola/RCA

     Victor, 1993.

 

               



[1]A Morte tem várias facetas a interpretar; não designa apenas o fim, também pode representar um meio de purificação, uma passagem à vida: “(...) a Morte nos lembra que é preciso ir ainda mais longe e que ela é a própria condição para o progresso e para a vida.” (Jean Chevalier e Alain Cheerbrant. Dicionário de Símbolos, 10ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1996, p. 623) Sendo assim não podemos deixar de notar que uma das representações da Morte está intimamente ligada ao Amor, definindo um caráter que conduz à purificação, à vida: “Os traços do rosto à esquerda nada perderam de seu charme feminino, pois as afeições não morrem e a alma ama além do túmulo.” (grifo nosso) (Dicionário de Símbolos, op. cit., p. 622)

[2]Esta é  a definição básica apresentada por Harry Shaw no seu Dicionário de Termos Literários,  Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978, p. 49.

[3]Alceu Valença, Romance da Bela Inês, op. cit.

[4]Dicionário de Símbolos,op. cit., p.600.

[5]O adjetivo melindrosa é aqui interpretado no sentido de que melindre pode ser identificado com “coisa frágil, delicada; susceptibilidade; escrúpulo”, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª ed., Porto: Porto Editora, 1989.

[6]Dicionário de Símbolos, op. cit., p. 563.

[7]Dicionário de Símbolos, op. cit., p. 563.