A MICROESTRUTURA NO DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA

(THE MICRO-STRUCTURE IN THE HOUAISS DICTIONARY OF PORTUGUESE LANGUAGE)

 

Alice Maria Teixeira de SABOIA (Universidade Federal de Mato Grosso/R)

Janaina Thaines Moreira DAMIAN Universidade Federal de Mato Grosso/R)

Josy Leal MIRANDA (Universidade Federal de Mato Grosso/R)

Paola Simone Silveira SANTANA (Universidade Federal de Mato Grosso/R)

 

 

ABSTRACT: This paper approches the micro-structural aspects of Houaiss Dictionary of Portuguese Language. There are too much  kinds of micro-structural patterns in it, and there is no a constant one following along of this. So, in spite of being a great dictionnary,  it displays a very complicate internal structural coherence. 

 

KEYWORDS: Dictionary of language - Lexicography - Micro-structure patterns

 

Introdução.

 

Parece consente entre os lexicógrafos que dicionário é um livro de referência, ou de consulta, que lista lexemas, ou vocábulos, de uma ou mais línguas, usualmente em ordem alfabética, acompanhados de informações sobre sua escrita, pronúncia, classe gramatical, significado, ou definição, história, uso, etc (Cristal,  1994). Em especial, o dicionário de língua, monolíngüe, recorta apenas uma língua, não comportanto, portanto, inclusão de lexemas, ou vocábulos de outra língua, em sua nomenclatura. Além disso, lembra esse autor que os dicionários variam muito em tamanho e em finalidade também:  vão desde obras completas, com vários volumes e milhares de páginas e verbetes até pequenos dicionários de bolso, com  um número bastante reduzido de páginas, de verbetes e de informações. Rey-Debove (1970) já chamava a atenção para as questões atinentes ao dicionário, enquanto texto duplamente programado, engendrando um conjunto de itens e tipos de informação: o primeiro, ou seja, o conjunto de itens constitui sua nomenclatura e o segundo, ou seja, os tipos de informação, constituem aquilo que se chama de microestrutura, ou as informações constantes do artigo, acerca da entrada. Neste trabalho faz-se um estudo da microestrutura de uma obra de consulta,  o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa,  (2001). Trata-se, portanto, de uma obra recente,  cuja elaboração, supõe-se, deu-se,  provavelmente, à luz das mais modernas e atuais discussões teórico-metodológicas da Lexicologia e da Lexicografia.

 

Fundamentação teórica.

 

                Barbosa, (1996 e 1999), baseando-se em Coseriu, propõe um modelo, no qual situa o dicionário de língua no nível do sistema e, como tal, de acordo com essa autora, este inventaria os lexemas de um dado sistema lingüístico, a respeito dos quais veicula informações de natureza semântica, nocional, referencial, gramatical e fonética. Nesse último entendimento, acompanha Boutin-Quesnel (1995). Barbosa (1999:41) caracterizou, a partir de um corpus,  constituído de vários dicionários bilíngües,  sua tipologia estrutural e, em relação à microestrutura - que interessa em particular a este trabalho - delimitou "uma tipologia das relações de equivalência entre a entrada e a correspondente definição do verbete". Na seqüência, considerando outros teóricos da Lexicologia, da Lexicografia e de Terminologia[1], postula:

"a existência de critérios fundamentais, para a ordenação das entradas (macroestrutura), para a constituição das definições complementares (microesturutra) e para a explicitação da rede de relações interverbetes (sistema de remissivas)".

Lança luzes sobre o problema ainda a observação dessa mesma estudiosa, a respeito da microestrutura, em que alude  à existência de um continuum que vai da microestutura mínima - entrada e definição - segundo ela, a uma microestrutura que tende ao infinito, expresso este na fórmula 1 a  n.

Assentando sua discussão em Rey-Debove (1971), Barbosa (idem)  ressalta a natureza da microestrutura, em termos de "um conjunto de informações, que tem uma estrutura constante, correspondente a um programa e a um código de informações aplicáveis a qualquer entrada". Assim dito,  denomina o conjunto entrada + enunciado lexicográfico de artigo ou verbete. Lembra, ainda, que essa microestrutura básica é uma variável, cujas informações dependem do contexto lexicográfico. Ressalta também o critério hierárquico que orienta a organização interna da microestrutura, consagrando a paradigma definicional como elemento nuclear, em torno do qual os outros paradigmas ocorrem, conforme consta dessa mesma discussão.

 

Descrição e Análise do Corpus.

 

Desse modo, partindo, pois, dos modelos de microestrutura que propõe Barbosa (1999), no presente trabalho, após pesquisar 1.421 verbetes, extraídos aleatoriamente do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, descrevem-se abaixo os seguintes tipos, decorrentes de agrupamentos de informações microestruturais, de acordo com os paradigmas informacional (PI), definicional (PD) e  pragmático (PP), além da presença, ou não, das remissivas (R):

 

Tipo 1. Artigo = {+ Ent. + Enun. Lexicográfico ( + PI 1...n + PD 1...n) }

Tipo 2.  Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  ( + PI 1...n + PD 1...n + R ) }

Tipo 3. Artigo = {+ Ent. + Enun. Lexicográfico (+PI 1...n + PD1...n + PP1...n +R 1...n)}

Tipo 4.  Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+ PI 1...n + R)}

Tipo 5.  Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+ PI 1...n + PD1...n + PP )}

Tipo 6 - Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+PI 1...n + PD + PP + R)}

Tipo 7- Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+PI )}

Tipo 8 - Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+ PD + R)}

Tipo 9 - Artigo = { + Ent. + Enun. Lexicográfico  (+PI 1...n + PP1...n +R1...n )}

                Foram selecionados alguns exemplos dos tipos 1, 2, 3 e 4, conforme transcritos logo a seguir,  a título de ilustração dos modelos de mais alta freqüência e distribuição regular, ao longo do dicionário ora estudado.

Como exemplos do tipo 1, têm-se:

"abacaxicultor /ô/ adj.s.m. (c1982) que ou aquele que se dedica à abacaxicultura Θ ETIM abacaxi + - cultura".

"abA FIS METR símb.de ABAMPERE".

"nogueirense adj.2g.2g. (1916 cf. IBGE) relativo a Artur Nogueira SP ou o que é seu natural ou habitante ΘETIM top. Artur Nogueira + -ense".

"pecu- el.comp. antepositivo de uma raiz indo-européia *peku- ‘gado’, representada em lat. e em germ. (ver FEUD); a cognação lat. inclui pecu (us.sobretudo no pl.: pecua, uum), voc. antigo, ‘gado, rebanho(s)’; p.ext. ‘dinheiro’; pecus, oris ‘muitos animais da mesma espécie, gado; rebanho (de ovelhas), fato (de cabras), vara (de porcos)’ (it. pecora,friul. piore, toscano pecoro), donde os der. pecuinos,a,um ‘de gado’, pecuarius,ii  ‘criador de gado’, pecuaria,ae ‘gado, rebanhos, manadas’; criação de gado’, pecuarius,a,um ‘de gado, de rebanho, de manadas’lat. tar. pecualis, e ‘de animal, de besta’ peculium,ii ‘pequena parte do rebanho dada pelo senhor ao escravo que o guardava ( peculiaris ovis); pecúlio, economias do soldado (peculium castrense); propriedade particular, bens, posses, haveres’, por vezes em sentido obsceno (=membrum virile) (alentejano pegulho), donde peculiaris,e ou peculiarius, a, um ‘adquirido com o pecúlio; que diz respeito ao pecúlio; próprio, que pertence como próprio; peculiar, particular, especial; distinto, notável’ (esp.pegujal, port. pegulhal) peculiaritas, átis ‘peculiaridade’ o v.dep. peculor, aris, atus sum, ari ‘furtar o dinheiro público, tornar-se réu de concussão, cometer peculato’, peculator, oris ‘ladrão de dinheiro público, concussionário’; pecúnia, ae ‘riqueza em gado; dinheiro, riqueza’;p.ext. ‘moeda’,ae, em b.-lat., ‘moeda de cobre’, donde pecuniarius, a, um ‘de dinheiro, pecuniário’, pecuniaris,e e pecunialis,e ‘id.’, pecuniosus, a, um ‘rico em gado; rico, endinheirado; lucrativo’; de pecus, oris derivam pecoralis, e ‘relativo ao gado, aos rebanhos, às manadas’,pecorosus,a,um ‘abundante, rico em gado’; a cognação vern., predominantemente culta, inclui voc. documentados desde o sXIV: despecuniado, despecuniar; pécora, pecorear; pecuária, pecuário pecuarista, peculado, peculador, peculatário, peculato; peculiar, peculiaridade, peculiarização, peculiarizado, peculiarizante, peculiarizar, peculiarizável;  pecúlio; pecúnia, pecuniária, pecuniário, pecunioso; pegulhal, pegulho ‘pecúnio’; pegural, pegureira, pegureiro".

                Um exemplo do tipo 2 segue:

"viajada s.f. B infrm. ato ou efeito de viajar; viagem Θ ETIM fem. substv. de viajado; ver vi (a)".-

                O tipo 3 apresenta-se da seguinte forma:

"Amistoso /ô/  adj. (1899, cf. CF) 1 que é próprio de amigo(s); com amizade; amigável, afetuoso <aceno a.> 2 que tem tendência a mostrar-se amigo; propenso à amizade <temperamento a.> adj. s.m. 3 FUTB B que ou o que é disputado fora de campeonato ou de torneio, na maioria das vezes para fins como arrecadação de fundos, confraternização, treinamento de jogadores etc. (diz-se de jogo, de disputa esportiva entre dois times) <convidou o time da cidade vizinha para um jogo a.> <o a. terminou empatado> Θ ETIM esp. Amistoso (1726) ‘id.’, der, de amistad  ‘amizade’; ver am(a). Θ SIN/VAR ver antonímia de malcriado Θ ANT ver sinonímia de malcriado."

"riçar v. (sXVII cf. FlobOp) 1 t.d.int. encrespar ( cabelos), encaracolar em forma de rico; frisar, encarapinhar <r. o cabelo que é muito liso> <cabelos que riçam facilmente> 2 t.d. tornar arrepiado; eriçar, arrepiar <o vento frio riçou-lhe os cabelos> Θ ETIM f.afer. de arriçar; ver obs. sobre etim. de der. em arriçar;  ver eric- Θ SIN/VAR ver antonímia de acepilhar Θ ANT ver sinonímia de acepilhar  Θ HOM riça(3ªp.s.), riças(2ªp.s.) / riça(s.f.) e pl.; riço(1ªp.s.) / rico(adj.s.m.)".

                Os artigos seguintes ilustram o  tipo 4:

"nó-de-adão s.m. ver PROEMINÊNCIA LARÍNGEA Θ GRAM pl.: nós-de-adão".

"tra- pref. ver TRANS-".

                               Após a organização e a quantificação dos dados, obtiveram-se os seguintes resultados: tipo 1 - 692, ou seja,  48,790 % da amostra; tipo 2 - 463, ou seja, 33,30% dos dados amostrais; tipo 3 - 133, ou seja 9,36% da amostra;  tipo 4 - 60, ou seja, 4,22% do total dos dados amostrais; tipo 5 - 46, ou seja, 3,23% da amostra;  tipo 6 - 09, ou seja, 0,63% do total da amostra; tipo 7 - 05, ou seja, 0.35% do total da amostra; tipo 8 - 02, ou seja, 0,14% do total amostral; e, finalmente, o tipo 9 - 01, ou seja, 0,07 da amostra estudada.

                Esses números, lançados na planilha eletrônica do programa Excel, constituíram o seguinte gráfico:

 


 

 


Conclusões.        

 

A distribuição dos dados no gráfico acima revela um perfil microestrutural do dicionário em tela, com predominância dos seguintes tipos:  artigo 1 = {+ Ent. + Enun. Lexicográfico (+ PI  1.....n + PD  1....n)},  artigo 2 = {+ Ent. + Enun Lexicográfico (+ PI  1...n + PD 1...n + R)} e artigo 3 = {+ Ent. + Enun. Lexicográfico (+ PI 1..n + PD 1....n + PP 1....n + R)}. Esses resultados indicam também que, pelo menos, na amostra observada, o dicionário cumpre um programa microestrutural esperado, ou seja, a  microestrutura mínima (de acordo com Barbosa, 1999) faz-se presente na grande maioria de seus verbetes, com prejuízo do paradigma pragmático, cuja ocorrência registra-se com baixa freqüência, levando-se em conta o total de verbetes coletado. Não se faz, pois, com muita freqüência, a atualização do vocábulo no universo do discurso, para ilustrar o uso. A  prática lexicográfica optou por fazer referência a contextos de ocorrência do vocábulo, indicando a fonte, mediante codificação  lexicográfica. Esta, bastante sofisticada e, não raro, obscura, implicou a necessidade de uma longa nota explicativa e, até mesmo de uma "chave do dicionário" que, nem sempre, abre suas portas,  inúmeras delas hermeticamente fechadas ao usuário comum da língua portuguesa.

Não se pode,  pois, afirmar que esse dicionário carece de fornecer informações, principalmente, gramaticais, etimológicas e filológicas, o que faz com que seja um excelente banco de dados para os pesquisadores, em especial os dessa área,  estudiosos da diacronia da língua portuguesa, em busca de raridades, de preciosas informações históricas, sempre de difícil acesso.

No que tange ao paradigma informacional, há um importante dado a destacar: sua apresentação é constantemente expandida, quer em seqüência, logo após a entrada, quer disseminado ao longo dos artigos (o que é mais freqüente),  principalmente no que se refere às informações etimológicas e filológicas, revelando um dicionário de língua fortemente marcado pela presença das informações diacrônicas e gramaticais. Registraram-se, inclusive, verbetes constituídos da entrada (único elemento constante) + paradigma informacional (PI 1...n) + remissivas, como o  quarto  tipo de mais alta freqüência, constituindo 4,22% da amostra. Se se levar em conta que, pela organização hierárquica do verbete, o paradigma definicional é nuclear, tem-se um paradoxo, dado que não se espera que haja, nesse entendimento, verbete, ou artigo, sem definições. Há, ainda, casos de verbetes constituídos de entrada + paradigma informacional mínimo unicamente, sem, sequer, remissiva. É  certo que a freqüência desse tipo é muito baixa, insignificante até, mas constitui  um caso extremo de exclusão do paradigma nuclear do artigo.

Por  fim, o grande número de abreviaturas e de siglas dificulta sobremaneira a consulta a este dicionário, obrigando o usuário a buscar na nota explicativa, nas listas de abreviatura, símbolos, siglas e fórmulas, informação para decifrar o texto lexcicográfico. Assim, do ponto de vista pragmático, o dicionário oferece sérios entraves,  para sua consulta,  mesmo ao usuário mais exigente.

 

RESUMO: Este artigo aborda aspectos microestruturais do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Demonstra-se que nesse dicionário há muitos tipos de modelos microestruturais e que não há apenas um, constante, seguido ao longo de seu texto lexicográfico. Assim, apesar de ser um grande dicionário, ele apresenta uma coerência estrutural interna muito complexa.

 

PALAVRAS-CHAVE:  Dicionário de língua; Lexicografia; modelo microestrutural.

 

BIBLIOGRAFIA.

 

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[1] Dentre outros, refere-se a J. Rey-Debove, G. Haensch, U. Weinreich, Bernard Al, C. Dubois, B. Pottier, R. Galisson,  F. Rastier.