CONDIÇÕES DA PESQUISA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA, DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E DA LIBERDADE ACADÊMICA EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS

(CONDITIONS OF SCIENTIFIC AND TECHNOLOGICAL RESEARCH, UNIVERSITY  AUTONOMY AND ACADEMIC FREEDOM IN STATE AND PRIVATE UNIVERSITIES)

 

Cidmar Teodoro Pais (Universidade de São Paulo/Universidade Braz Cubas)

 

ABSTRACT: This paper suggests a semiotic approach to the relationships established between the discourse of scientific and technological research, the pedagogical discourse, the bureaucratic-administrative discourse in the academic life of Brazilian University; particular conceptions which a corresponding in state and private Universities towards public policies and challenges charateristics of our times.

 

KEYWORDS: Science; institutional education; technology; Semiotics.

 

 

0. Introdução

 

Este trabalho propôs-se a estudar, de um lado, relações que se estabelecem entre discurso da pesquisa científica e tecnológica, discurso pedagógico, discurso burocrático-administrativo, na vida acadêmica da Universidade brasileira; de outro, concepções e práticas diferenciadas que lhes correspondem nas Universidades públicas e privadas, frente a políticas públicas, a desafios postos pela globalização, pela diversidade cultural, na época contemporânea. Utilizaram-se modelos de semântica cognitiva, sociossemiótica e semiótica das culturas. Examinaram-se o modo de existência e produção dos universos de discurso envolvidos, condições de produtividade e eficácia, naqueles diferentes tipos de instituições, pesquisa da qual são aqui apresentados resultados evidentemente resumidos.

 

1. Da política científica e tecnológica

 

                A ciência, em sua fase atual, pós-moderna e anti-positivista, identifica-se com o discurso científico (Greimas, 1986; Rastier, 2000: 445-470). Com efeito, a ciência constitui um processo de busca da verdade e construção do saber, para a melhoria das condições de vida do homem (Pais, 1993: 614-617). Desse modo, a ciência não é neutra, objetiva e apolítica, como diziam os positivistas, a ciência é política, embora não seja partidária: a prática da ciência somente se justifica quando exercida com responsabilidade política e social. Além disso, a ciência se define como o estudo dos dados observáveis. Ora, os fenômenos observáveis ‘no mundo’ o são, sempre, em função dos diferentes recortes epistemológicos, de que resultam diversas abordagens e distintos objetos formais (Bachelard, 1972). Estes, por sua vez, são suscetíveis de descrições várias - na medida em que o foco escolhido precede o objeto -, segundo metalinguagens operacionais construídas, mais ou menos eficazes, determinantes de formalizações variáveis, elaboradas em conseqüência.

A ciência busca analisar, descrever e explicar os fenômenos, propondo formalizações, de que decorrem modelos científicos, que, concatenados, conduzem à constituição de teorias científicas, dependentes de metateorias. Epistemologicamente, entende-se por metateoria uma teoria que serve de modelo à construção das teorias e modelos científicos, tecnológicos, filosóficos, estéticos, morais de uma época da História e que, ao mesmo tempo, define a ideologia, os sistemas de valores subjacentes a tais teorias e modelos. Assim, cultura (recortes culturais, sistemas de valores, ‘visão do mundo’), ciência lato sensu (produção, acumulação e transformação do saber), ciência aplicada e/ou tecnologia lato sensu (aplicação de um saber a um fazer) são indissociáveis, em todas as sociedades humanas. Ciência e tecnologia são processos de produção inseridos no processo maior, o processo histórico da cultura.

                De fato, a política científica e tecnológica pode ser examinada pelas modalidades relativas às estruturas de poder dos discursos. A ciência lato sensu designa-se por outro metatermo geral, o conhecimento, definido pela combinatória de modalidades poder-fazer-saber; a aplicação de um saber a um fazer, nomeada ciência aplicada e/ou tecnologia lato sensu, designada pelo metatermo geral competência define-se pela modalidade complexa poder-saber-fazer. Termos contrários, coexistem necessariamente e se sustentam numa tensão dialética, num processo de alimentação/realimentação. O termo contraditório de ciência é ignorância, definida pela modalidade complexa não-poder-fazer-saber, enquanto o termo contraditório de competência é o da incompetência, definida, a seu turno, por não-poder-saber-fazer.

                Estabelece-se um percurso dialético de produção entre ciência e competência: tomando como ponto de partida um saber (conhecimento), é possível aplicar o modelo a um fazer; essa instância constitui o lugar de validação/falseamento do saber, na medida em que aí se verifica certo poder de explicação do modelo – em que medida sua aplicação é satisfatória - e seus limites - além dos quais sua aplicação é insatisfatória, os fatos que o modelo não explica. Configura-se, então, uma situação de ignorância, que remete novos problemas ao processo de busca da verdade e (re)construção do saber. Assim, ciência e competência só são produtivos quando articulados na relação de alimentação/realimentação e inseridos, portanto, nesse percurso dialético.

                Verifica-se que os termos ‘simples’ - ciência, competência, incompetência, ignorância - combinam-se em termos complexos. A combinatória ciência x competência estabelece o epicentro do processo de produção, definido como produtividade com responsabilidade social  (poder-saber-fazer x poder-saber-fazer), isso, certamente, segundo o sistema de valores da cultura em causa; a combinatória ciência x incompetência configura o termo complexo teoria inoperante (poder-saber-fazer x não-poder-saber-fazer); a combinatória competência x ignorância determina o metatermo prática irresponsável (poder-saber-fazer x não-poder-saber-fazer); enfim, a combinatória incompetência x ignorância define o termo neutro do modelo semiótico (não-poder-saber-fazer x não-poder-saber-fazer), a nulidade.

                Característica dos países em desenvolvimento é a ‘opção’ pela fórmula de ‘desenvolvimento dependente’, fundamentado na importação de tecnologias, com asfixia da pesquisa básica, divórcio entre ciência básica e ciência aplicada e/ou tecnologia. Resulta progressiva dependência tecnológica e econômica, dívida externa e interna crescentes, dívida social irresgatável, esterilização da Universidade e instituições de pesquisa, incomunicação entre Universidade e sociedade. Em diferentes sociedades, essa ‘anomalia’ surge em grau variável, de maneira geral ou localizada.

Para uma análise semântico-cognitiva da política científica e tecnológica, consideremos relações entre conceptus, ‘modelos mentais’ (Rastier, 1991: 73-114), denominações, termos e metatermos das metalinguagens da semiótica e da epistemologia, entre designationes, designata, referências, no percurso gerativo da enunciação (Pais, 1998: 371-384). Observa-se que os conceptus de ciência e tecnologia não são ‘universais’ e às designationes/termos ciência, tecnologia, política científica e tecnológica subjazem diferentes sistemas de valores, ‘visões de mundo’ das culturas e sociedades em que acontecem, como discursos e práticas sociais. (Pais, 1999: 13-21; Pais, 2000: 395-421). Além da ideologia necessária “dizer verdadeiro”, o discurso científico sustenta a ideologia contingente, da língua e cultura em que se dá: ciência, tecnologia, política científica e tecnológica são diferentemente concebidas, apesar da intersecção conceptual, comum à visão ‘ocidental’ de ciência e tecnologia, um arquiconceptus. Notam-se, pois, conjuntos de traços semântico-conceptuais culturais, ideológicos, metaconceptus, e conjuntos de traços modalizadores, manipulatórios, sobretudo nos discursos políticos, metametaconceptus (Barbosa, 1999: 29-52).

             Assim, no conceptus lato sensu <<política científica e tecnológica>> equivalente a <<desenvolvimento>>, <<libertação>>, caracteriza-se o metaconceptus1 pelos traços semântico-conceptuais [+desenvolvimento sustentável], [+autodeterminação], o metametaconceptus1 como [+soberania], [+justiça social]; no conceptus <<política científica e tecnológica>> equivalente a <<dependência>>, <<dominação>>, define-se o metaconceptus2 por [+desenvolvimento dependente], [+importação de tecnologia] e o metametaconceptus2, como [+economia predatória}, [+’darwinismo’ social].

 

2. Ensino, pesquisa, ciência, tecnologia, educação e autonomia universitária

 

Explicam-se relações entre discurso científico e tecnológico, diversidade cultural e condições estabelecidas pelo processo de ‘globalização’. O avanço científico e tecnológico constitui uma das condições do desenvolvimento econômico e social. Verifica-se, contudo, que o discurso de produção do conhecimento e o de suas aplicações manifesta-se, sempre, numa língua natural, no âmbito de uma cultura e sociedade, com sua ‘visão do mundo’ e sistemas de valores. À pesquisa e ao ensino de uma ciência ‘universalizante’, ‘globalizada’, neopositivista, instrumento de dominação, cumpre opor uma produção científica e tecnológica política e socialmente responsável, libertadora, inserida num processo educacional adequado que, sem xenofobia, leve em conta aspirações, expectativas e necessidades das comunidades, nacionais e regionais.

O discurso pedagógico caracteriza-se por uma estrutura de poder muito rica, definida por sobremodalizações de modalidades complexas: poder-fazer-saber Þ poder-saber-fazer Þ poder-fazer-querer Þ poder-fazer-dever Þ poder-fazer-crer. Trata-se, pois, de um discurso que se destina, respectivamente, a gerar conhecimento, constituir uma competência, despertar vocação, instaurar uma ética, de modo a estabelecer um sistema de crenças sobre as qualificações precedentes.  Assim, ensino e pesquisa, formação e qualificação, para o desenvolvimento social e profissional, são indissociáveis. Conseqüentemente, a Universidade deveria constituir espaço privilegiado, em que se estimula criatividade, gera-se conhecimento, constrói-se competência, desperta-se vocação, consolida-se ética, firma-se consciência profissional, aprimora-se exercício da cidadania, constitutivos de uma sistema de valores e de crenças. Tais atributos não passam de uma geração a outra, através de bibliografia ou por meios eletrônicos. Condição para esse processo é o convívio permanente de docentes e alunos, pesquisadores experientes e jovens pesquisadores, em clima de liberdade, o único que enseja a responsabilidade e garante a continuidade do processo histórico das instituições. A autonomia universitária é necessária ao desenvolvimento científico, tecnológico e social. Formação para o exercício da cidadania e qualificação para atividades profissionais, articuladamente, são objetivos da Universidade.

Contudo, o modelo burocrático-administrativo vigente, em função da voraz retórica legiferante e normativa, altamente centralizadora, assegura apenas, até certo ponto, autonomia de gestão, limitada aos quadros detentores do poder burocrático.

Examinando as questões apontadas, foi possível formular um modelo semiótico que procura dar conta de algumas facetas das relações entre ensino, pesquisa, produção técnico-científica, política científica e tecnológica, educação institucional, no processo histórico das instituições universitárias, e enquanto atividades imprescindíveis ao desenvolvimento social, político e econômico do nosso país, buscando explicação mais satisfatória para as tensões, os conflitos entre as forças em jogo naquele processo:

 

                                                                  t.d.

                         AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

Percurso da

reconstrução

iniciativa                                             controle

                   querer-ser, querer-fazer                      dever-ser, dever-fazer        

 


Liberdade                                                                                                            Cerceamento

Acadêmica

 


                          desregulamentação                           inércia  

não-dever-ser, não-dever-fazer                  não-querer-ser, não-querer-fazer

 


                                                                                                                 percurso da

ESTAGNAÇÃO                                            deterioração

 (Æ)                    

 

Figura 1: Autonomia universitária

 

Nessas condições, iniciativa caracteriza-se pela modalidade complexa querer-ser, querer-fazer; controle, pela modalidade complexa dever-ser, dever-fazer. Iniciativa e controle constituem duas forças, duas tendências contrárias. O termo contraditório de iniciativa é inércia; o termo contraditório de controle, desregulamentação. A combinatória iniciativa x controle [(querer-ser, querer-fazer) x (dever-ser, dever-fazer)] configura uma tensão dialética, o epicentro do processo, o equilíbrio dinâmico, que sustenta a produtividade com liberdade e responsabilidade social, ou seja, a autonomia universitária definida em sua concepção mais elevada. A dêixis positiva, combinatória modal de iniciativa x desregulamentação [(querer-ser, querer-fazer), x (não-dever-ser, não dever-fazer)] configura a liberdade acadêmica; a dêixis negativa, combinação das modalidades complexas de burocracia x inércia [(dever-ser, dever-fazer) x (não-querer-ser, não querer-fazer)] determina o cerceamento; o termo neutro, combinatória modal, a seu turno, de desregulamentação x inércia [(não-dever-ser, não-dever-fazer) x (não querer-ser, não querer-fazer)] qualifica-se como estagnação.

Além disso, o modelo prevê dois ciclos. Um ciclo traduz-se pelo percurso que vai da liberdade acadêmica à autonomia universitária, o percurso da reconstrução, aquele que autorizaria uma autêntica reforma universitária, conduzindo-a à plenitude de suas funções, a serviço da sociedade. Um segundo ciclo parte do cerceamento e atinge a estagnação, o percurso da deterioração, que é preciso evitar a todo custo.

                As Universidades públicas enfrentam graves dificuldades, não só pela insuficiência de recursos e salários defasados, mas também, como instituições organizacionais, porque submetidas a um processo de fragmentação interna. A estrutura do poder difuso (Foucault, 1998) criou oportunidades para a aceleração de uma constante na cultura brasileira, o processo de apropriação privada da coisa pública. Estatutos, regimentos, códigos de ética verificam-se ineficazes e impotentes, para deter o processo. Departamentos e/ou Áreas, em muitos casos, dominados por pequenos grupos hegemônicos, proscrevem pessoas, teorias, correntes, doutrinas, mesmo aquelas que têm respaldo na comunidade científica internacional, eliminando-se, de facto, a liberdade acadêmica, degradando-se a qualidade do ensino e da pesquisa. Interferem em editoras e ‘julgamentos’ de projetos de pesquisa, em agências de fomento. Na mesma instituição, Departamentos vizinhos sustentam o ideário da Universidade pública.

                As Universidades privadas, como empresas, embora submetidas a regulamentações governamentais e das agências de fomento, apresentam, no entanto, características diferenciadas e variáveis. Mantenedoras há em que sócios/quotistas, imbuídos da supremacia do poder econômico, interferem na atividade acadêmica, impõem teorias e conteúdos, reservando-se toda tomada de decisões e eliminando a liberdade acadêmica. Outras Mantenedoras há, inspiradas em modelos de Universidades privadas do ‘primeiro mundo’, que reservam para si apenas a gestão administrativa e financeira, delegam aos docentes-pesquisadores a tomada de decisões, quanto à pesquisa e ao ensino, garantem ampla liberdade acadêmica, ouvem o alunado, numa estratégia de marketing, que lhes permite alcançar e manter padrões de excelência.

 

3. Considerações finais

 

Educação e investigação são processos que somente se efetivam nas relações entre pessoas, entre educandos e educadores, entre pesquisadores e jovens pesquisadores, que usufruam da mais completa liberdade acadêmica, exercitem a reflexão crítica, a dúvida sistemática, sem cerceamento doutrinário ou burocrático. Obtém-se ensino e pesquisa de qualidade, para o desenvolvimento social e profissional, quando se assegura autonomia de ensino e de pesquisa para cada docente/pesquisador e seu alunado, restaurando-se a plenitude da liberdade acadêmica, de modo que atividades-fins se sobreponham a atividades-meio. Esse é o significado amplo de autonomia universitária. Outrora, via-se a educação como meio de ascensão social. Nesses tempos de ‘globalização’, educação é condição de sobrevivência das pessoas e do país. A conjuntura contemporânea, nacional e internacional, exige profunda reformulação das políticas científicas, tecnológicas e educacionais, de modo a contribuir para o acesso à cidadania, aos bens culturais, à qualificação profissional, à inserção social, à construção de uma sociedade mais livre, justa, democrática.

Para alcançar esses objetivos, é necessário levar em conta os modos de existência e produção do discurso científico, do discurso tecnológico, do discurso da política científica e tecnológica, face ao processo da educação institucional no Brasil, considerar, ainda, sistemas de valores, sistemas de crenças subjacentes a esses universos de discurso e práticas sociais, buscando administrar as pressões do processo de globalização e assegurar o respeito às exigências legítimas da diversidade cultural.

 

RESUMO: Este trabalho propõe abordagem semiótica de relações que se estabelecem entre discurso da pesquisa científica e tecnológica, discurso pedagógico, discurso burocrático-administrativo, na vida acadêmica da Universidade brasileira;  concepções e práticas diferenciadas que lhes correspondem nas Universidades públicas e privadas, frente a políticas públicas, a desafios postos pela época contemporânea.

 

PALAVRAS-CHAVE: Discurso; educação; pesquisa; instituição; semiótica.

 

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