ORAÇÕES DE TEMPO-CONDIÇÃO:
UMA ANÁLISE SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA FUNCIONAL
(Time-condition
clauses: an analysis focused on the Theory of Functional Grammar)
Gisele Cássia de SOUSA (UNESP- Câmpus de São José do
Rio Preto)[1]
ABSTRACT:
Based on the treatment given to adverbial clauses in Dik’s Functional
Grammar model, this paper intends to show an analysis of the time-condition
structures in brazilian spoken Portuguese, trying to make evident the relevance
and adequacy of such a treatment for the description of these structures.
KEYWORDS:
time-condition clauses; layered structure; Functional Grammar
0. Introdução
Embora seja possível definir uma forma ou um conjunto de formas preferidas para a expressão da condição em um grande número de línguas naturais, sabe-se que elas se constituem pela interação de vários domínios – especialmente semânticos e discursivos – da gramática.
À análise das estruturas condicionais têm se voltado, em maior escala, estudiosos de diferentes áreas, como a psicologia, a filosofia e a lingüística, em geral, sem um propósito comum. Sob perspectiva lingüística, com diferentes enfoques (funcionais-discursivos, diacrônicos, de aquisição), os estudos têm partido de quatro pontos básicos para a identificação e análise das condicionais, conforme demonstram Traugott et al. (1986): (1) a clara equivalência semântica das estruturas com a forma lógica se-então; (2) a recorrência de determinados marcadores morfológicos, sintáticos e lexicais em tais sentenças de línguas particulares; (3) a possibilidade de extensão desses marcadores a sentenças que não são semanticamente condicionais; e (4) a extensão do valor semântico de condicionalidade a sentenças que não apresentam tais marcadores.
Partindo dessa última estratégia de análise e adotando a perspectiva da Gramática Funcional (Dik 1989, 1997), em especial o modelo de estrutura hierárquica da oração, procuro demonstrar, neste trabalho, a relevância de tal modelo para a descrição das estruturas do português brasileiro[2] introduzidas por quando que permitem a leitura de condicionalidade, denominadas aqui orações de tempo-condição. Para isso, apresento, na seção 1., um breve esboço da proposta de tratamento das construções adverbiais, denominadas satélites circunstanciais, na Gramática Funcional (daqui em diante, GF) e o modo como são tratados os satélites de condição e de tempo; em 2., apresento uma discussão acerca da relevância de tal tratamento para a definição dos satélites de tempo-condição. Em 3., apresento as considerações finais.
1. As construções adverbiais na GF
Como uma teoria que se caracteriza pela integração dos
componentes e que se desenvolve especialmente com base em uma teoria da
interação verbal, a GF apresenta um esquema abstrato de descrição
que faz jus tanto às propriedades formais quanto às semânticas da oração. A
oração deve assim ser descrita em termos de uma estrutura subjacente
abstrata da oração, que é concebida como uma estrutura complexa em que
diferentes níveis ou camadas (layers) de organização semântica e
formal são distinguidos. A estrutura subjacente hierarquicamente estruturada,
como proposta pela GF, pode ser
visualizada – de um modo bastante simplificado – no esquema abaixo[3]:
E
X=prop s4
e=pred
est. s3
pred core
s2
pred nuclear s1
predicado x=arg
(1) Esquema de representação da estrutura em camadas da oração (adaptado
de Bolkestein, 1992).
Conforme a estrutura em (1),
o nível mais baixo é formado pelo predicado e seus argumentos (x), resultando
na predicação nuclear. Essa predicação nuclear, opcionalmente
expandida pelos satélites de predicado (s1), formará uma predicação
central (core). A predicação central, que designa um estado de
coisas (EsCo) potencial, pode opcionalmente ser expandida pelos satélites de
predicação (s2) e assim formar a chamada predicação
estendida (e), uma entidade referente a um EsCo situado no espaço e
tempo concreto ou conceitual. Essa estrutura é o input para a formação
da proposição, que designa um fato possível (X), entidade de ‘terceira ordem’ (cf. Lyons
(1977)) que pode ser julgada em termos
de seu valor de verdade, e que pode ser especificada por satélites de nível 3 (s3). O nível mais alto (E)
designa um ato de fala (que pode ser declarativo, imperativo,
ou interrogativo), que é aplicado à proposição. O nível dos atos
de fala pode também ser opcionalmente especificado por satélites de nível 4 (s4). 5
Dik et al. (1990) consideram que a representação da oração como uma unidade hierarquicamente estruturada, consistindo de diferentes camadas de complexidade crescente, permite que os satélites sejam analisados como tipos distintos, subdivididos de acordo com a contribuição que apresentam na especificação de uma camada particular. Essa proposta de definição e análise dos satélites é, segundo Dik et al. (op. cit.), similar à classificação de construções adverbiais proposta em Quirk et al. (1985) e elaborada a partir de Greenbaum (1969), como se observa no quadro abaixo:
Quirk et al. (1985) |
Tipo
de satélite correspondente |
|||
- adjuntos:
-predicação -sentença |
nível
representacional:
-satélites de predicado
-satélites de predicação |
|||
-disjuntos:
-atitudinal
-estilo |
nível interpessoal:
-satélites de proposição
-satélites ilocucionários |
(3) Classificação das
construções adverbiais (Quirk et al. (1985)) e a tipologia de satélites
na GF
Assim, os adjuntos na classificação de Quirk et al. (op. cit.) correspondem aos satélites de nível mais baixo (de predicado e predicação) na GF, que atuam no nível representacional; e os disjuntos, satélites de nível mais alto (proposicionais e ilocucionários) que se apresentam no nível interpessoal6.
Na tipologia dos satélites da GF, o satélite de condição é definido como sendo possível de especificar informação adicional no nível da predicação, da proposição e no do ato de fala7. As ocorrências em (1) e (2) abaixo exemplificam um satélite condicional que atua no nível da predicação e da proposição, respectivamente:
(1) a gente toma vinho de
acordo também...com o tipo de comida...se é carne...aqueles hábitos que a gente
tem...se é carne é vinho tinto...se é peixe a gente usa vinho branco
(RJ/DID-328:17)
(2) L1 você geralmente viajando você...não se prende
muito ao horário então normalmente você almoça horas bem mais tarde...aqui
porque você tem o problema de trabalhar cê tem uma hora fixa pra
almoçar...então se eu comer muito na hora do café não vou ter vontade de almoçar...mas
é um hábito que eu acho que é muito sauDAvel...é você colocar frutas de manha
no café (RJ/DID-328:31)
Em (1), a condicional especifica um Esco
(cf. ‘ser peixe’) de cuja ocorrência depende a ocorrência de um outro
EsCo (cf. ‘usar vinho branco’) (Dik et al. 1990: 34). Em (2), o
satélite condicional relaciona a condição ao conteúdo proposicional da oração
principal, ou, nos termos de Dik (1990: 237) e Dik et al. (1990:38), apresenta a
verdade de uma proposição, a (cf. ‘comer muito na hora
do café’), como uma condição suficiente para a verdade de uma segunda
proposição, b (cf. ‘não ter vontade de
almoçar’).
Já o satélite temporal pode especificar,
de acordo com Dik et al. (op. cit.), entidades pertencentes ao nível da
predicação e ao do ato de fala8. Abaixo,
observa-se uma ocorrência de um satélite temporal que atua na predicação:
(3) Inf: é, por exemplo, o que acontece, o que está acontecendo é o
seguinte, é que quando eu comprei o apartamento me disseram... as
prestações, após a entrega das chaves, serão de três mil e seiscentos cruzeiros
sabe quanto é que está saindo o meu financiamento mensal? (RJ/D2 – 355:35)
Um satélite temporal como em (3) especifica um quadro
temporal (cf. quando eu comprei o apartamento) dentro do qual um EsCo (me
disseram...) ocorre, ligando-se, portanto, ao nível da predicação (EsCo).
2. Satélites de tempo-condição?
Considerando-se que, como apresentado acima, o satélite condicional relaciona-se a entidades que se situam no nível da predicação e da proposição, e o satélite temporal tipicamente especifica entidades que se situam no nível da predicação, o que dizer dos satélites que parecem expressar, em uma mesma forma (estruturas introduzidas pela conjunção quando), as funções semânticas de tempo e de condição? Observem-se as ocorrências em (4) e (5) abaixo:
(4) L2 que eu nao conheço
quando eu nao conheço...tá ótimo...mas quando a gente já conhece
demais...as estrada acaba cansando () é o que acontece
com...(SSA/D2-98:43)
(5) então a firma não pode tirar das pessoas...dos seus próprios
clientes não pode tirar:::...elementos não pode tirar pessoal quer dizer então
tem que ser de:: firmas estranhas...né?...e dessas firmas estranhas também tem
que...falar com essa pessoa e agir com essa pessoa dentro da máxima
ética...porque essa pessoa provavelmente será um cliente futuro...não é? a
própria firma quando se gosta do atendimen::to quando quiser vai
procurar...essa firma porque foi bem atendido (SP/D2-360:27)
Tanto em (4) quanto em (5) as ocorrências com quando
são passíveis de receber uma
leitura condicional, o que se evidencia pela possibilidade de parafraseá-las
por ‘se a gente já conhece demais as estradas, acaba cansando’ e ‘[a
própria firma] se quiser, vai procurar essa firma, porque foi bem atendido’,
respectivamente. Ainda assim, poder-se-ia dizer que tais satélites
especificam o quadro temporal, no caso de (5), um tempo futuro e,
em (4), presente-simultâneo, em que determinado EsCo ocorre, tal
como em (3) acima. No entanto, diferentemente de (4) e (5), a ocorrência com quando
em (6) abaixo, não permite a paráfrase com uma condicional (cf. se o menor
já estiver pela quarta, terceira, quarta série, ele já estará mais independente):
(6) L1 a gente nunca pode
precisar o tempo...de ah ahn:: () com as crianças...necessitando da gente ...
não pode precisar mesmo...com certeza entao eu tenho impressao de que quando o menor...já::estiver
assim...pela quarta série terceira quarta série...ele já estará
mais...independente e::...e os maiores poderão fazer às vezes de::...assim
de::preceptores dos menores e me aliviarão...nessa parte...(SP/D2-360:22)
Assim,
satélite temporal em (6) parece de fato especificar o tempo em que
determinado estado de coisas ocorre(rá) e então atuar no nível da
predicação. A ocorrência em (5), no entanto, com relação à função semântica que
expressa, atuaria no nível da proposição ou da predicação?
Dik et al. (1990) apresentam algumas propriedades
formais e comportamentais dos satélites, as quais, segundo eles, permitem que
os diferentes subtipos sejam definidos com relação à camada em que atuam para
além de suas propriedades semânticas9.
Segundo eles, dentre as propriedades definidoras de um satélite de nível representacional
está o fato de que eles recaem sob o escopo de atribuição das funções
pragmáticas de Tópico e Foco. A função de Foco pode assim ser atribuída a
satélites de nível representacional, mas dificilmente a satélites de nível
interpessoal, exceto em contextos altamente marcados.
Um teste que indica o status de Foco de um
constituinte é a possibilidade de sua ocorrência como resposta a uma
interrogativa parcial. Nas ocorrências de satélite temporal em (4)-(6) acima,
isso se daria do seguinte modo:
(4’) Em que momento as estradas acabam
cansando? As estradas acabam cansando quando a gente já (as) conhece
demais.
(5’) Em que momento ele
vai procurar a firma? Ele vai procurar a firma quando quiser
(6’) Em que momento o
menor estará mais independente? Ele estará mais independente quando
estiver na terceira ou quarta série.
No entanto, as ocorrências em (4) e (5) parecem também
adequadas em respostas acerca da condição sob a qual determinado EsCo ocorre,
apresentando informação nova. Tal possibilidade também confirma a leitura de
condicionalidade dos satélites temporais em (4) e (5).
(4’’) Em que caso as
estradas acabam cansando? As estradas acabam cansando se a gente já (as)
conhece demais.
(5’’) Em que caso (a própria firma) vai
procurar a firma? (A própria firma) vai procurar a firma se (ela)
quiser.
Assim,
a possibilidade de receber função de Foco permite considerar que os satélites
temporais em (4) e (5) podem especificar entidades que se situam no
nível da predicação, mas nada esclarecem sobre a possibilidade de essa
especificação ser tanto do tipo temporal quanto condicional.
Uma
observação mais atenta às ocorrências em (5) e (6) sugere, nesse sentido, que
uma consideração mais plausível parece ser a de que os satélites temporais
envolvem entidades diferentes em cada uma das ocorrências. Do modo como
ocorre em (6), pode-se dizer que a especificação que o satélite temporal
realiza envolve um EsCo (‘estar na terceira ou quarta série’), que pode
ocorrer e ter uma certa duração. Porém, o mesmo não pode ser dito de querer
em (5): querer indica uma “entidade de terceira ordem”, localizada no
espaço e no tempo mental do falante, que pode ser avaliada em termos de
seu valor de verdade (cf. Lyons (1977)).
Poder-se-ia
considerar então que, por apresentar um ‘EsCo’, a especificação em (6) liga-se
a uma predicação, apresentando um quadro temporal (quando o menor já
estiver pela terceira ou quarta série), em que determinado EsCo
ocorre (ele estará mais independente). Já em (4), ‘quando a gente conhece
demais, as estradas acabam cansando’, a especificação realizada pelo satélite
temporal, também no nível da predicação, apresenta um quadro temporal
(quando a gente já conhece demais) em que um EsCo ocorre (as estradas acabam
cansando), porém, nesse caso, permite a interpretação adicional de que a
ocorrência do EsCo é dependente da ocorrência do estado de
coisas apresentado no satélite temporal, a interpretação condicional. A
ocorrência em (5), por sua vez, por apresentar um ‘entidade de terceira ordem’,
especifica um quadro temporal (quando quiser) em que determinado EsCo
é possível de ocorrer (vai procurar aquela firma), atuando então no
nível da proposição, permitindo a interpretação condicional. Essa última
consideração, se correta, levaria à conclusão de que satélites temporais
também especificam informação adicional no nível da proposição, o que não é
reconhecido em Dik et al. (1990).
3. Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi o de analisar a possibilidade de os satélites introduzidos por quando em português, que permitem a leitura de condicionalidade, serem definidos de acordo com o nível ou camada da estrutura da oração em que atuam. Foi possível observar, no entanto, que a localização nas diferentes camadas, como proposta em Dik et al. (1990), com base na função semântica que especificam, não leva em conta satélites que permitem dupla interpretação, não sendo possível determinar, de maneira não-ambígua, em que nível se situam as orações de tempo-condição do português. Contudo, a definição dos satélites, com base em sua complexidade interna (EsCos, fatos possíveis), também proposta em Dik et al. (op. cit), possibilita a distinção dos satélites temporais que permitem a interpretação condicional, no nível da predicação (EsCos dependentes) e no da proposição (‘entidades de terceira ordem’), daqueles que apenas especificam o quadro temporal em que determinado Esco ocorre.
RESUMO: Com base no tratamento dado às orações
adverbiais no modelo de Gramática Funcional de S. Dik, este trabalho apresenta
uma análise das estruturas de tempo-condição no português oral brasileiro,
buscando-se evidenciar a relevância e adequação de tal tratamento para a
descrição dessas estruturas.
PALAVRAS-CHAVE: orações de tempo-condição,
estrutura em camadas, Gramática Funcional
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIK, S. C. et
al. The hierarchical structure of the clause and the typology of adverbial
satellites. In: NUYTS, J.; BOLKESTEIN, A. M.; VET, C. (Eds.). Layers and levels of representation in
language theory: a functional view. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, p.
25-70, 1990.
DIK, S. C. The
theory of Funcional Grammar I. Dordrecht:
Foris, 1989.
_____. The
theory of Functional Grammar II.
New York: Mouton, 1997.
LYONS, J. Semantics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1977.
TRAUGOTT, E. C. et.
al. (Eds.) On conditionals. Cambridge:
Cambridge University Press
[1] Mestranda do Programa de
Pós-graduação em Estudos Lingüísticos.
[2] As ocorrências apresentadas
aqui foram extraídas do córpus mínimo do Projeto
da Gramática do Português Falado (NURC/Brasil).
[3]
Para uma apresentação
mais detalhada veja Dik (1989, cap. 1-3).
5 Cada uma das camadas apresenta ainda seu próprio tipo de operador. Operadores (representados pela variável p) distinguem-se dos satélites por especificarem informação adicional por meios gramaticais, enquanto os satélites o fazem por meios lexicais. Os operadores, além disso, diferentes dos satélites, não são considerados especificações opcionais. Eles não estão representados no esquema (1).
6 O nível representacional
da expressão é considerado ser aquele que corresponde à descrição de um EsCo
obtido em algum mundo real ou imaginário ao qual o falante quer se referir. O
nível mais alto, o interpessoal, é visto como corresponde ao modo como o
falante apresenta a informação, que diz respeito à situação referida, ao
ouvinte (cf. Dik et. al. (1990 : 27)).
7 Em Dik et al. (1990:34) as condicionais são consideradas satélites de predicação. Em Dik (1990), porém, essa consideração é omitida. Como se verá, parece coerente considerar aqui o satélite condicional de predicação. Com relação às condicionais de ato de fala, elas são definidas como sendo satélites que apresentam uma condição para a felicidade do ato de fala seguinte, como em: João saiu, caso você não tenha ouvido (cf. Dik et al. 1990: 39). Focalizarei, aqui, apenas as condicionais predicacionais e proposicionais.
8 O exemplo dado em Dik et al.
(1990) de um satélite temporal de ato de fala é: Pela última vez, me dê
isso!
9 Por questão de espaço, apresento
apenas uma das propriedades dadas em Dik et al. (1990).