NEOLOGISMOS EM TEXTOS JURÍDICOS DA INTERNET

(NEOLOGISMS IN INTERNET JURIDICAL TEXTS)

 

 

Margarete Simone da MOTA (PG/CAPES – UNESP – Araraquara)

 

 

ABSTRACT:  A sample of neologisms extracted from Internet juridical texts was studied with respect to morphological structure and formation rules. The analysis showed that the most productive processes are affixation, conversion, compounding and borrowing.

 

KEYWORDS: neologism, Word-formation rules, juridical texts.

 

 

0. Introdução

 

É consenso entre os autores que a linguagem do Direito é arcaizante, um legítimo repositório de termos e expressões latinas; entretanto, a consulta a textos de Direito Civil e Comercial revelou a existência de unidades neológicas nesse gênero discursivo do português. Ex.: faturização, hedge, insuportabilidade, locatício.

Sabemos que as transformações ocorridas nos diversos campos de atuação humana têm gerado a necessidade de criar palavras para nomear as novas descobertas científicas e tecnológicas, as novas tendências sociais, políticas e econômicas, ocasionando conseqüentemente a expansão do léxico.

A linguagem jurídica, evidentemente, não poderia deixar de acompanhar e refletir essa evolução da sociedade e as modificações profundas que isso provocou nas relações sociais, reguladas pelo Direito. Tornou-se fundamental, portanto, para a linguagem jurídica, promover a atualização lexical e o preenchimento de lacunas através da recorrência a processos neológicos de enriquecimento do léxico.

A idéia da realização deste estudo surgiu a partir do projeto intitulado Programa interdepartamental e interuniversitário de compatibilização e de correspondência de textos e termos jurídicos em francês-português, visando às relações bi e multilaterais entre o Brasil (e o Mercosul) e a Unidade Européia, idealizado pelos professores Luiz Antônio Amaral e Ney Vieira, e em desenvolvimento no Laboratório de Lexicografia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Câmpus de Araraquara. O objetivo geral do projeto é investigar as transformações ocorridas na linguagem jurídica, tanto nos planos retórico, textual e semântico, quanto no campo da atualização lexical que vem ocorrendo nas diversas áreas do Direito de França e Brasil.

Segundo Amaral e Vieira (1999: 1), a linguagem do Direito é bastante formal e nos países latinos circula uma mesma bibliografia básica. Entretanto, não se verifica a esperada homogeneidade, devido à dinâmica diferencial das línguas, dos jargões e, principalmente, à incorporação de leis e jurisprudências de tradições não-latinas, que são englobadas segundo processos sócio-históricos bem diferentes.

É importante, pois, elaborar glossários, compêndios de modelos discursivos, dicionários de termos e expressões nominais, além de boletins sobre o sistema jurídico e suas instituições nos dois países, França e Brasil.

O objetivo específico do nosso trabalho, porém, é averiguar que tipos de neologismos estão penetrando na linguagem jurídica brasileira, se as formas encontradas são características da área do Direito ou se pertencem também a outros gêneros discursivos, quais são os processos neológicos mais utilizados e, dentro do que for possível, dar uma contribuição inicial para a futura elaboração de glossários específicos da área.

 

1. Fundamentação Teórica

 

Instrumento mais eficaz no estabelecimento da comunicação entre os homens, a língua acompanha as transformações ocorridas no seio de uma sociedade, renovando-se constantemente. O conjunto de itens léxicos de qualquer língua viva reflete o processo evolutivo da comunidade que dela faz uso; por isso, são inseridos termos gerados pela necessidade de nomear novas criações, novos conceitos, novas tendências.

Os domínios da ciência e da tecnologia constituem, nos dias atuais, um campo profícuo para a criação de novos vocábulos, o que leva à ampliação do léxico não só no âmbito das linguagens específicas, mas também na esfera da linguagem geral.

A criação de uma palavra constitui, segundo Carvalho (1984: 9), a imposição de um conceito; a atitude criativa representa antes um ato social que um ato lingüístico, é uma forma de impor à comunidade uma visão de mundo. Assim, os neologismos, além de evidenciar a criatividade do falante, estão profundamente ligados às modificações do mundo exterior e às diversas áreas do conhecimento humano.

No português, a ampliação do acervo lexical se faz por meio de processos endógenos, ou seja, mecanismos oriundos da própria língua, como a derivação e a composição. Além desses recursos de expansão do léxico, a língua tem recorrido a empréstimos de palavras de outros sistemas lingüísticos desde sua formação, através do contato íntimo com outros povos (influência celta, fenícia, africana, tupi, etc) e relações sociais com outras sociedades (de origem provençal, francesa, italiana, espanhola e inglesa, entre outras). (Alves, 1990)

Do século XVIII até a primeira metade do século XX, a língua portuguesa sofreu forte influência francesa. Contemporaneamente, o idioma português está sob a influência da língua inglesa, principalmente nos domínios técnico e científico.

Ao processo de criação vocabular dá-se o nome de neologia. O elemento resultante, a nova unidade léxica, denomina-se neologismo.

Costuma-se distinguir dois tipos de neologismos: o conceptual (ou semântico) e o formal (Basílio (1979), Alves (1990), Rocha (1998), Biderman (2001), entre outros). O neologismo conceptual consiste em uma acepção nova, agregada ao campo semasiológico de um significante qualquer. Essa atribuição de significados a uma base formal, transformando-a em novo item lexical, deve-se a processos de expansão ou especialização de sentido, como a metáfora e a metonímia.

O vocábulo internação, empregado no texto a seguir, constitui um exemplo de neologismo conceptual: em um país da periferia do capitalismo, como o nosso, a internação de know-how (importação de tecnologia) acaba interferindo em importantíssimos aspectos da economia, como, por exemplo, a política cambial ou de controle do capital estrangeiro. Internação, conforme podemos observar, não foi empregado com o seu significado básico de “reclusão”, mas com um novo sentido, o de “importação”.

O neologismo formal consiste em uma palavra nova introduzida no idioma, seja um termo vernáculo – isto é, resultante de mecanismos endógenos – ou proveniente de outro sistema lingüístico, nesse caso denominado empréstimo.

De modo geral, a formação de palavras, em qualquer idioma, ocorre a partir de unidades já existentes na língua, ou por meio de unidades provenientes de outro sistema lingüístico. A neologia essencialmente fonológica, isto é, a criação de um item lexical com significante totalmente inédito, é um fato raro em todas as línguas, como nos afirma Alves (1990:11).

Diversos estudos realizados sobre a formação de palavras no português contemporâneo comprovaram que a derivação (sufixal e prefixal, principalmente) é o processo mais produtivo na língua. Há, entretanto, outros mecanismos utilizados na formação de vocábulos, como a composição, truncamento, conversão, empréstimo, neologismo semântico, cruzamento vocabular.

 

2. Material e metodologia

 

O material utilizado para a verificação dos tipos de neologismos que estão penetrando na linguagem do Direito e dos processos de formação de palavras mais produtivos nesse gênero discursivo do português constitui-se, principalmente, textos publicados na Internet, como artigos, decretos, petições, pareceres, contratos. Mas também consultamos um Manual de Direito Comercial e Súmulas do Tribunal Federal.

Para que a unidade léxica fosse considerada um termo neológico, foram tomados como referência um dicionário específico da área, de Pedro Nunes (1982), e o dicionário da língua portuguesa Aurélio (1986). Os vocábulos não registrados em nenhuma dessas obras foram considerados neologismos.

Após a apreensão das unidades neológicas, realizamos uma comparação com outros dicionários, a saber: dicionários específicos da área, De Plácido e Silva (1991) e Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (2000), e o dicionário da língua Novo Aurélio SecXXI (1999). O Objetivo desse cotejo foi averiguar quantas das novas formas encontradas já se encontram incorporadas às obras encarregadas da documentação do léxico português.

 

3. Neologismos encontrados nos textos jurídicos e os processos atuantes

 

Apresentamos a seguir alguns exemplos extraídos do córpus:

 

 

(1) Semelhantes exigências, como se vê, inconciliam-se com o novel regime igualitário. (Pa)[1]

 

(2) O locatário, por ato unilateral, dependente de sua exclusiva vontade, ao fim do prazo locatício, pode adquirir o bem locado. (MDCo)[2]

 

(3) Promitente-comprador de imóvel residencial transcrito em nome de autarquia é contribuinte do Imposto Predial e Territorial Urbano.(SSTF)[3]

 

(4) O contrato assume a feição internacional e pode ser regido pela dépeçage. (CIV)[4]

 

(5) As empresas de arrendamento mercantil tinham a sua disposição corriqueiras operações de hedge cambial. (CLCRC)[5]

 

(6) A desorganização da política econômica vigente em nosso país leva à subversão da intenção contratual, forçando os que se utilizam de contratos de financiamentos a adimplir obrigações imprevisíveis, o que vem a resultar ante a insuportabilidade de arcar com tantos aumentos abusivos.(Pet)[6]

 

(7) A instituição financeira faturizadora assume a obrigação de gerir os créditos do faturizado. (MDCo)[7]

 

 

A partir dos exemplos acima, podemos observar alguns dos processos neológicos em atuação na linguagem jurídica: derivação, composição, empréstimo e neologismo semântico, conversão (ou derivação imprópria).

A derivação consiste na formação de palavras mediante o acréscimo de afixos. Os afixos são elementos que se agregam a uma palavra-base, atribuindo-lhe uma idéia acessória. Aqueles que se antepõem à base denominam-se prefixos, partículas independentes ou não que se manifestam de uma maneira recorrente, em formações em série. Os elementos pospostos à base são denominados sufixos e normalmente alteram-lhe a classe gramatical, são partículas não-autônomas e recorrentes (cf. exemplos (1) e (2)).

No processo de composição, um novo item léxico é formado pela justaposição de bases independentes ou não. A unidade composta representa uma idéia única e autônoma, isto é, funciona morfológica e semanticamente como um único elemento, e não costuma manifestar formas recorrentes (cf. exemplo (3)).

Nos exemplos (4) e (5), temos empréstimos lexicais de outros sistemas lingüísticos: francês e inglês, respectivamente.

Uma mudança no conjunto dos semas de determinada unidade léxica é o que caracteriza o neologismo semântico. Assim, no exemplo (6), o termo refere-se não a uma característica da convivência entre pessoas, mas sim da condição de arcar com os encargos.

O exemplo (7) constitui um caso de conversão ou derivação imprópria. Por meio desse processo, a palavra sofre uma mudança em sua distribuição, não se manifestando qualquer alteração formal. Na língua geral, os particípios passados são comumente empregados como adjetivos; na linguagem jurídica, porém, é mais freqüente o seu uso como substantivo, como se verifica acima.

Abaixo temos alguns outros exemplos, envolvendo os mesmos processos:

 

derivação prefixal: anti-estadual, auto-aplicável, inaproveitabilidade, infaconstitucional, infralegal, inincidência, insuportabilidade, prefalado, pós-fixado, resseguro, sobrenorma, sobredireito, sublicenciamento etc;

derivação sufixal: faturização, faturizadora, fiduciante, investigatório, indenizatório, logiciário, ressecuritário, mercosulista, negocial, sucumbencial etc;

composição: constituição-cidadã, dia-multa, mutuário-fiduciante, mutuante-fiduciário, negócio-fim, negócio-meio, princípio-garantia etc;

empréstimos: conventinal factoring, engineering,  franchising, leasing back, management, merchandisee, merchandisor etc.

 

4. Conclusões

 

Nossa pesquisa ainda não está concluída, mas já podemos observar que, assim como na língua geral, o processo neológico de derivação é o mais produtivo na linguagem jurídica e que, apesar de ser considerada bastante conservadora e um verdadeiro repositório de termos latinos, termos de outros sistemas lingüísticos, mais especificamente do inglês, têm penetrado nesse gênero discursivo do português.

Outro fato observado é que se costuma criar na linguagem do Direito famílias de novos itens léxicos como, por exemplo, faturização, faturizado, faturizadora, para preencher as lacunas existentes.

Também parece comum a criação de pares vocabulares pelo processo de composição (Ex.: promitente-comprador, promitente-vendedor). Essas formações justificam-se pelo fato de que ao gerar um novo item lexical para designar uma das partes de um contrato, ou uma das partes envolvidas num litígio, institui-se automaticamente a necessidade de designar a contra-parte.

Notamos que não são poucas as inovações lexicais na linguagem jurídica; entretanto, mantém-se uma tendência à utilização de operadores sufixais considerados improdutivos na língua geral (-tório, -ício, -ário), em palavras como indenizatório, locatício, logiciário.

 

RESUMO: A consulta a textos jurídicos extraídos da Internet revelou a existência de neologismos na linguagem do Direito. Pudemos observar que os processos neológicos atuantes nesse gênero discursivo do português são: derivação, derivação imprópria, composição, empréstimos e neologismos semânticos. Dentre esses processos, o mais produtivo é a derivação.

 

PALAVRAS-CHAVE: neologismos, processos neológicos, linguagem jurídica.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Ieda Maria Neologismo. Criação lexical. São Paulo: Ática, 1990. Série Princípios.

AMARAL, Luiz, VIEIRA, Ney Programa interdepartamental e interuniversitário de compatibilização e de correspondência de textos e termos jurídicos em francês-português, visando às relações bi e multilaterais entre o Brasil (e o Mercosul) e a Unidade Européia. Arararquara, UNESP, 1999. (ms)

ASSIRATI, Elaine T. Neologia por empréstimo na informática e seus processos de integração à língua portuguesa. Araraquara, UNESP, 1997. (Dissertação de Mestrado)

BASÍLIO, Margarida Teoria lexical. São Paulo: Ática, 1987.

BIDERMAN, M. T. C. Teoria lingüística. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CARVALHO, Nelly O que é neologismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

FERREIRA, A. B. DE H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed., revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa, 3.ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

NUNES, Pedro dos Reis Dicionário de tecnologia jurídica, 11.ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982.

ROCHA, Luiz Carlos de Assis Estruturas morfológicas do português. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

SANDMANN, Antonio José Competência lexical:  produtividade, restrições e bloqueio. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1991.

SIDOU, J. M. Othon Dicionário jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas, 6.ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

SILVA, De Plácido e Vocabulário jurídico 3.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991.



[1] (Pa ) Parecer – <www.faroljuridico.com.br>.

[2] (MDCo) Manual de direito comercial – COELHO, Fábio Ulhoa Manual de direito comercial. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

[3] (SSTF) Súmulas do Superior Tribunal Federal

[4] (CIV) Contratos internacionais virtuais. Ângela Bittencourt Brasil – <www.faroljuridico.com.br>.

[5] (CLCRC) Contrato de leasing com cláusula de reajuste Cambial. Marco Antonio Ibrahin – <www.faroljuridico.com.br>.

[6] (Pet) Petição – <www.faroljuridico.com.br>.

[7] Op. Cit.