CRER OU NÃO CRER – EIS A QUESTÃO: BRÁS CUBAS COMO LOCUTOR-ENUNCIADOR INFIEL E VOLÚVEL
(To
believe or not to believe - that is the question: Brás Cubas as an unreliable
and fickle narrator)
Maria Celeste Tommasello RAMOS (IBILCE/UNESP)
ABSTRACT: This paper analyzes the
construction of Machado de Assis's discourse in Memórias Póstumas de Brás Cubas
[The Posthumous Memoirs of Brás Cubas] to show the structural mechanisms that
make the reader notice deliberately that the fictional narrator - Brás Cubas -
is fickle and unreliable.
KEY-WORDS: Machado de Assis; The
Posthumous Memoirs of Brás Cubas; reliability
O romance machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, apresenta, em
relação à narração, de acordo com a nomenclatura de Pouillon, o ponto de vista
constituído pela visão com, que escolhe um único personagem que constituirá
o centro da narrativa ... É com ele
que vemos os outros protagonistas, é com
ele que vivemos os acontecimentos narrados (1974: 54). A narrativa
limitada-se ao campo mental de uma só personagem – Brás Cubas – que, como
locutor-enunciador, em conjunto com o autor implícito, constrói a enunciação.
O autor implícito, usando a terminologia de Booth (1980: 167), é figura que está no limiar de um ser tangível, pertencente ao mundo que conhecemos, que, ao posicionar-se diante desse nosso mundo, desdobra-se numa entidade que se oculta na tessitura da ficção e ali fica, por trás do discurso, é o alter ego do autor. Segundo ele, até o romance que não tem um narrador dramatizado cria a imagem implícita de um autor nos bastidores, seja ele diretor de cena, operador de marionetes ou Deus indiferente que lima, silenciosamente, as unhas.
Esse criador ficcionalizado em Memórias póstumas de Brás Cubas é o autor implícito, enquanto seu
porta-voz é Brás Cubas narrador (não podemos confundi-lo com Brás Cubas
personagem) e Machado de Assis é o criador (escritor).
A visão apresentada é central e não periférica, o que
pode ser encarado positivamente, porque centraliza os acontecimentos, unifica o
ponto de vista. Existe, entretanto, a desvantagem de ser uma visão fixa, nós
leitores estamos presos à visão de Brás Cubas, e na impossibilidade de
compartilharmos de outra visão, somos obrigados a permanecer com ele, vendo
tudo através de seu ponto de vista ou procurando entender por que ele reage da
forma que nos narra. Realizamos o papel ficcional do narratário ou
enunciatário, como o do “leitor” tantas vezes evocado textualmente na
narrativa. Reis e Lopes (1988: 63) definem o narratário como entidade fictícia, um “ser de papel” com
existência puramente textual, dependendo diretamente de outro “ser de papel”, o
narrador que se lhe dirige de forma expressa ou tácita.
Eles acrescentam ainda que o narratário está para o narrador como o leitor pretendido está para o autor
(1988: 64). E, ao encerrarem suas considerações sobre o narratário, afirmam que
o mesmo determina a estratégia narrativa
adotada pelo narrador, uma vez que a execução dessa estratégia visa em primeira
instância atingir um destinatário e agir sobre ele (1988: 65-6). É ao
“leitor”, portanto, que Brás, dirige sua narrativa, em primeira instância.
O narrador-protagonista é uma personagem que, por definição, é atuante, não podendo ser, ao mesmo tempo, espectador, crítico ou colecionador de opiniões alheias. Entretanto, o locutor-enunciador Brás apresenta, disseminadas por todo o texto, opiniões que ele próprio tece sobre outras personagens, que não podem ser feitas senão por um colecionador de opiniões alheias, como as seguintes:
[Brás fala dos pensamentos que se passam no íntimo de
Virgília, ao vê-lo morto]
E a imaginação
dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o
Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, – a imaginação dessa senhora
também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África
juvenil... (ASSIS, 1998: 18)
Ele descreve a direção da imaginação de outra personagem que somente ela própria conhecia. Além do que pensava Virgília, Brás dá indicações do que vai pela mente de outras personagens, quando, por exemplo, “exultam de felicidade”:
[Brás falando
sobre o primo de Virgília]
Havia ainda o primo de Virgília, o Luís
Dutra, que eu agora desarmava à força de lhe falar nos versos e prosas, e de o
apresentar aos conhecidos, quando estes, ligando o nome à pessoa, se mostravam
contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra exultava de felicidade;
mas eu curava-me da felicidade com a esperança de que ele nos não denunciasse
nunca. (ASSIS, 1998: 98)
Percebemos, então, que Brás não é mero espectador, pois espalha pela narrativa diversos comentários que dão conta dos pensamentos, das intenções e das opiniões alheias. Com estas críticas e com a exposição de opiniões que atribui a outras personagens, o narrador, dentro da visão com, vai provocando, pouco a pouco um maior afastamento do leitor. Este, a cada página, passa a desconfiar mais, assumindo, cada vez mais, o papel de analisador da personalidade de Brás.
A narrativa em primeira pessoa, apesar de não passar de uma convenção literária, não ilude o leitor, racionalmente falando, pelo menos o leitor disponível ou o leitor crítico. Grosser (1986: 17-27) fala do pacto narrativo realizado entre leitor e autor, a fim de que uma obra seja fruída pelo primeiro, pensando nos conceitos de verossimilhança, credibilidade, verdade e possibilidade aplicados à produção narrativa literária, pois segundo ele o público é o juiz supremo da verossimilhança de um texto (1986: 17, tradução nossa). Assim, ele distingue três modalidades de leitura: ingênua, disponível e crítica.
A leitura ingênua é, segundo ele, operada por um leitor que se identifica totalmente com a história, personagens, e principalmente se dispõe a aceitá-los como verdadeiro, ou melhor, aceita como verdadeira a história que lhe é proposta, mesmo em seus aspectos fictícios, mesmo quando é inteiramente fictícia (1986: 22, tradução nossa).
É na leitura disponível que se estabelece o pacto narrativo, isto é, o leitor disponível, sabendo que a história é fictícia, comporta-se como se ela fosse verdadeira (suspensão da incredulidade) com a finalidade de provar as sensações e as emoções que o autor se propõe despertar (1986: 17, tradução nossa).
Já a leitura crítica, além de pressupor uma primeira leitura disponível, é uma releitura com modalidades particulares. Nesta modalidade de leitura, segundo ele, o texto é percorrido ... de acordo com as exigências de análise: a leitura segue à frente ou volta a trecho anterior para confrontar expressões, para estabelecer relações de significado (1986: 24, tradução nossa), enfim, trata-se de uma leitura que visa à análise do texto e não somente à sua fruição por parte do leitor.
O ponto de vista do narrador, na visão com, produz um impacto imediato pré-racional que certamente contribui para uma espécie de suspensão da descrença momentânea, reagindo muito bem como forte recurso à verossimilhança, tão buscado nas obras de ficção para que haja o pacto narrativo e a leitura disponível seja realizada. Porém, no caso do romance em estudo, pelos motivos já expostos, mesmo na primeira leitura, o leitor pode começar a racionalmente afastar-se e assumir uma postura de crítico, deixando de fazer sua parte do pacto narrativo, passando a analisar a história, as personagens, as estratégias narrativas, as circunstâncias do discurso, etc.
Pouillon, ao tratar da visão com, afirma que: já nos defasamos com relação a ele [narrador-protagonista], não é a ele que vemos e sim aos outros “com” ele. (1974: 55). No romance em estudo, os outros personagens são compreendidos por Brás de forma pejorativa, são descritos por ele com defeitos enormes que fazem desaparecer as pequenas virtudes. Chega ao ponto de se auto-descrever de forma pejorativa, como, por exemplo, no trecho em que fala de sua própria educação – desta terra e deste estrume é que nasceu esta flor (ASSIS, 1998: 34).
Por todo o texto, Brás Cubas vai
revelando seu caráter mentiroso:
[Brás resume seu estado de espírito diante das
atitudes que Lobo Neves – marido traído – tem diante da desconfiança sobre o
caso amoroso Brás-Virgília]:
Não
tive ânimo de argüir, e, aliás, argüi-la de quê? Não era culpa dela se o marido
a amava. Disse-lhe que não me fizera coisa nenhuma, que eu tinha
necessariamente ciúmes do outro, que nem sempre o podia suportar de cara
alegre; acrescentei que talvez houvesse nele muita dissimulação, e que o melhor
meio de fechar a porta aos murros e às dissensões era aceitar a minha idéia da
véspera [ter uma casinha especial para os encontros amorosos dos dois].
(ASSIS, 1998: 96)
O leitor conhece a situação de
Brás e Virgília, e o narrador, ao declarar que via em Lobo Neves (marido
traído) muita dissimulação, mostra-se
fingido e arrogante, visto que o narratário ou enunciatário (leitor) sabe que
quem fingia, naquele caso, não era Lobo Neves, mas os dois amantes. É realmente
um comentário sarcástico, como tantos outros de Brás, carregado de ironia.
Assim, o narrador-protagonista vai espalhando por todo
o texto as pistas que despertam o leitor para o fato de que o discurso dele não
é confiável. Isso leva o interlocutor a imaginar que as pessoas e situações que
são descritas por ele talvez não sejam assim, ou não tenham ocorrido da forma
como ele as narra. Ao leitor restam as suposições sobre o que seria realmente
"verdade", ou melhor, lhe é permitido dar uma outra versão para os
acontecimentos ficcionais narrados.
Por pequenas “fendas” abertas em seu discurso, Brás
demonstra uma espécie de visão
diferente daquela com, pois por elas
nós leitores temos o que Pouillon chamou de visão por detrás, isto é, também o narrador-protagonista se
analisa, vendo-se por trás, e proporciona-nos esta visão dele próprio.
Já sabemos, desde o título de Memórias póstumas de Brás Cubas, que se trata de memórias, que
segundo Pouillon (1974: 44-5), pode trazer a visão por detrás juntamente com a visão com. Desta forma, a nosso ver, estas "memórias",
apesar de se tratar de rememoração, não têm compromisso com a verdade, e por
isso, são fingidas duas vezes: uma mais externa ao discurso (ser ficção), mais
ligada à realidade externa, à verossimilhança; outra interna, ligada à crença
do leitor/receptor da mensagem transmitida por emissor que provoca a dúvida, ou
seja, a inverossimilhança interna. É evidente que esse mentir e deixar-se pegar
no ato faça parte do “jogo enunciativo” do discurso. Este procedimento constrói
uma espécie de retórica do avesso, ou melhor, uma retórica auto-reflexiva, com
discurso metalingüístico ou auto-reflexivo como classifica Cintra (1985: 125)
uma vez que a construção do discurso caminha para o sentido de abrir o jogo da representação (1985:
124) com o propósito claro de desnudamento
do processo de construção da obra (1985: 123).
É exatamente o desacordo entre as afirmações, nos dois textos, que
instaura um processo de desconfiança da aparente retórica do texto que cria a
auto-reflexividade, fazendo com que a retórica espelhe-se nela mesma, para
fazer-se analisar enquanto construção.
Desta forma, certamente o ponto de vista escolhido na
composição estrutural de Memórias póstumas
de Brás Cubas (narrador-protagonista) aliado aos recursos da
verossimilhança e à forma como o discurso é desenvolvido pelo narrador dão
caráter de dubiedade à obra, convidando o leitor a construir uma suposição
particular daquilo que vai enxergando nas entrelinhas, nas pistas deixadas
pelas dissimuladas falas do locutor-enunciador Brás Cubas, que fazem refletir
sobre a retórica aparente do texto, sobre o jogo criado na representação
supostamente feita por ele.
Assim, o
locutor-enunciador ficcional encarnado por Brás pode ser classificado como
narrador não fidedigno, dentro da terminologia de Booth (1980: 174), que, ao
estudar a distância entre narrador e autor implícito, nota a oposição
importante entre narrador-fidedigno e narrador-não-fidedigno. Segundo ele, a
característica mais forte do narrador não fidedigno, presente principalmente no
romance narrado em primeira pessoa, é o fato
de não falar nem agir de acordo com as normas da obra e, conseqüentemente do seu autor implícito, de
quem está sempre distanciado. Com a introdução da ironia, esta oposição
pode aumentar sua complexidade, tornando-se ambígua.
No romance em estudo, o narrador deliberadamente faz com que o leitor
perceba, por meio de seu próprio discurso, que não é fidedigno pois aparecem
constantemente, no texto machadiano, afirmações que geram uma espécie de
duplicidade ou ambigüidade na interpretação, pois o discurso contém
contradições em sua estrutura. É o caso, por exemplo, do trecho em que o
próprio Brás se descreve: ... fui dos
mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso
(ASSIS, 1998: 32). Ou então em outro trecho: Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático,
egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a
esconder-lhes os chapéus. (ASSIS, 1998: 33)
Um narrador que se descreve como maligno, indiscreto, traquinas, voluntarioso, presunçoso, orgulhoso, vaidoso, egoísta e que despreza ou denigre os homens, não pode estar querendo angariar a confiança das pessoas com ética e moral. Suas afirmações ou descrições provocam, assim, uma tomada de posição oposta do leitor, que colocará em xeque suas afirmações ou observações. Essa é a posição crítica do autor implícito: criou um narrador que é digno representante dos valores burgueses, que ele quer satirizar! Ao levar o leitor consigo, o locutor-enunciador Brás Cubas vai, aos poucos, revelando-se, nas entrelinhas de seu discurso.
No
discurso construído por esta figura complexa que chamamos enunciador (locutor +
autor implícito), pode-se perceber um discurso da desconstrução, que mostra o
protagonista por dentro e que aponta seus defeitos. Brás vai se revelando, nas
entrelinhas, narcisista, inapto, egocêntrico: E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci
ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante,
calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos
enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada. (ASSIS,
1998: 174)
Ordem
Terceira é uma espécie de associação piedosa de fiéis, que segue as regras de
alguma ordem religiosa sem, contudo, dela fazer parte, e na qual cada membro
mantém sua condição de leigo. Brás declara, no capítulo XLVII – “Fase
brilhante”, três capítulos antes de terminar sua autobiografia, que participou
de ordem dessa espécie. O leitor atento lembrará que, no capítulo CXXIII – “O
verdadeiro Cotrim”, por meio do discurso ambíguo do enunciador, fica-se sabendo
que o cunhado de Brás fazia caridade, participava de confrarias ou ordens, e
então, sob a aparência de querer defender o cunhado, o narrador protagonista
Brás e o autor implícito, enquanto componentes do enunciador, constroem um
discurso paradoxal em que mostram grandes defeitos de Cotrim (o principal deles
talvez seja fazer caridade para promover-se publicamente). Capítulos à frente,
o próprio Brás se denunciará ao leitor mais atento, que se lembra dos
comentários com relação ao seu cunhado, como “fazedor de caridade para angariar
prestígio público”, evidenciando que também é vil como o cunhado. Este é um dos
tantos exemplos de discurso ambíguo do narrador volúvel Brás Cubas que pode ser
claramente percebido pelo leitor que tem boa memória.
Schwarz
(1990: 120), ao falar da volubilidade do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, percebe a existência de duas vozes
diversas dentro do discurso, uma de Brás (solidário
com a classe) e outra de seu alter
ego mostrando os defeitos dela. Ele vê nesta volubilidade, nesta
ambigüidade, a representação dos valores contraditórios da sociedade, que vive
um momento histórico em que convivem atitudes e fatos paradoxais – progresso,
idéias liberais, escravidão e colonialismo.
Descendo através da memória ao passado do narrador,
o leitor acompanha Brás no seu “olhar” e refletir sobre o mundo, vê o nascer do
seu discurso na fonte, pelo ângulo
oscilante, não fidedigno, volúvel e incerto
da sua experiência interna, demonstrando, pelo fluxo narrativo, uma espécie de
“realismo subjetivo”. Este realismo busca perscrutar os meandros internos da
obscuridade do viver para o ser humano,
demonstrando que a obscuridade da vida é praticamente impenetrável e que o
“olhar de cada um” permite detectar vários ângulos de visão diferenciados.
RESUMO: Analisamos a construção do discurso machadiano em Memórias póstumas de Brás Cubas a fim de apontar os mecanismos estruturais que fazem com que o leitor deliberadamente perceba que o narrador Brás Cubas é volúvel e não fidedigno.
PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; Memórias póstumas de Brás Cubas; fidedignidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSIS, J. M. M. Memórias póstumas de Brás Cubas. 24 ed. São Paulo: Ática, 1998.
[Série Bom Livro]
REIS, C. & LOPES, A.C.M. Dicionário de teoria da narrativa. São
Paulo: Ática, 1988.
GROSSER, H. Narrativa: manuale/antologia. Milano: Principato, 1986.
CINTRA, I. A
retórica da narrativa em Machado de Assis (Esaú e Jacó). São Paulo: 1985. Tese (Doutorado em
Letras – Área de Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
POUILLON, J. O tempo no romance. (Tradução de Heloysa de Lima Dantas). São
Paulo: Cultrix, 1974.
BOOTH, W. C.
A retórica da ficção. Trad. Maria
Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Minerva/Arcádia, 1980.