RELAÇÕES SINTÁTICAS ENTRE NÚCLEO E DEPENDENTES: O CASO DO AGUARUNA (JÍVARO)

(SYNTACTIC RELATIONS BETWEEN HEAD AND DEPENDENTS: THE CASE OF AGUARUNA (JÍVARO))

 

Angel CORBERA (Universidade Estadual de Campinas)

 

ABSTRACT: This article describes the morphosyntactic connections between constituents: head and their dependents in Aguaruna, an indian language of the Jivaro family. Four types of dependences are considered: possessed noun and possessor, noun and modifier, adpositions, and main verbs and their arguments.

 

 

KEYWORDS: Indian languages; grammatical relations; morphological typology.

 

0. Introdução

 

                Neste trabalho, descrevo algumas das características morfossintáticas das relações entre núcleos e dependentes que ocorrem em Aguaruna (Jívaro), uma língua indígena falada por 45 indivíduos que habitam a região da Amazônia Peruana.

                Na análise dos dados, sigo a descrição apresentada por Nichols (1986). Segundo essa autora, as línguas naturais podem apresentar marcas morfológicas ora no núcleo ora no dependente para assinalar as relações sintáticas que se estabelecem entre eles. Meu trabalho está dividido em duas partes: na primeira, faço um breve resumo da proposta de Nichols (op.cit.). Na segunda, apresento quatro tipos de relações de dependência que se dão em Aguaruna: a) entre núcleo e modificador, b) sintagma possessivo, c) sintagma adposicional e d) relação do verbo principal e seus argumentos.

 

1. Tipos de relação morfológica entre os constituintes

               

                Além da classificação tradicional entre línguas analíticas e sintéticas (Cipollone et alii, 1998), é importante considerar também, as relações de concordância e regência que se dão entre os constituintes. Por exemplo, em (1), os dados do Grego Antigo mostram a propriedade de regência entre preposições e um sintagma nominal, os dados em (2), do Espanhol, exemplificam a propriedade de concordância.

(1) Grego Antigo

 

a) [apo tou hipp-ou] (GEN.)              ‘do cavalo’

b) [en Spart-e#] (Dat.)                       ‘em Esparta’

c) [eis basil-ea] (ACC.)                       ‘o Rei’

 

                As preposições no Grego Antigo apo, em e eis não levam marca morfológica, pois são formas invariáveis independentemente dos sintagmas nominais que lhes seguem. Contudo, há uma relação de dependência entre as preposições e os sintagmas nominais correspondentes, ou seja, um caso típico de regência, fato mostrado pelos marcadores morfológicos que ocorrem no núcleo nominal. Dessa forma, as preposições do Grego Antigo em (1) regem o caso genitivo como em (a), o dativo como em (b) e o caso acusativo como em (c).

                Os dados em (2), a seguir, mostram a relação de concordância entre o núcleo e seus modificadores em Espanhol.

(2) Espanhol

 

a) el gallo negr-o y bonit-o                               ‘o galo preto e bonito’

b) los gallos negr-o-s y bonit-o-s                     ‘os galos pretos e bonitos’

c) la gallina negr-a  y bonit-a                           ‘a galinha preta e bonita’

d) las gallinas negr-a-s y bonit-a-s                  ‘as galinhas pretas e bonitas’

 

                Como se nota, a dependência sintática entre o núcleo e os modificadores em Espanhol se dá por concordância, pois os traços de gênero e número dos núcleos nominais gallo(s) ‘galo(s)’e gallina(s) ‘galinha(s)’ projetam-se morfologicamente nos adjetivos negro(a)s ‘preto(a)s’ e bonito(a)s ‘bonito(a)s’. Assim, em (2a), o nome gallo é masculino, singular; em (2c), gallina é feminino, singular, propriedades que se refletem nos modificadores respectivos. O mesmo processo ocorre com os determinantes el, los, la, las, que recebem as flexões de gênero e número.

                Os exemplos tanto do Grego Antigo como do Espanhol mostram que a regência e a concordância são muito similares, ou seja, os dependentes se subordinam a um núcleo. Contudo, na regência os traços morfológicos presentes na relação são relevantes para os nominais dependentes e não para os núcleos preposicionais como mostram os dados de (1a-c). Na concordância, dados de (2a-d), os traços morfológicos são relevantes tanto para os núcleos como para os dependentes, visto que os traços de gênero e número, que caracterizam os núcleos gallo e gallina, percolam também para os determinantes e adjetivos.

 

2. Marcação no núcleo versus marcação no dependente

 

                Segundo Nichols (1986), regência e concordância são duas noções básicas para a descrição da relação sintática entre os constituintes. Contudo, elas não descrevem as diferenças de locação dos marcadores morfológicos presentes nas línguas do mundo. As relações sintáticas, em termos da autora, podem ser marcadas, morfologicamente, ora no núcleo do constituinte ora no dependente, como ilustram os dois exemplos citados por Nichols (op. cit.: 57):

(3)

 

a) Inglês                                the   man – M’ s    H house

b) Húngaro           az     ember          H ház – M a

                                           art      homem         casa – 3sg                ‘a casa do homem’

 

Em (3a), o sintagma possessivo é marcado pelo caso genitivo que ocorre no nominal dependente man. Em (3b), o possessivo é indicado pelo sufixo {-a} que ocorre no núcleo nominal ház ‘casa’. Para definir esse tipo de relação sintática, Nichols introduz os conceitos tipológicos de línguas orientadas para a marcação no núcleo, exemplo o Húngaro, e línguas orientadas para a marcação no dependente, exemplo o Inglês. Esses dois conceitos podem aplicar-se não apenas às construções possessivas, mas a qualquer tipo de construção que estabeleça uma ligação entre um núcleo e seu(s) dependente(s). Nichols considera as seguintes relações:

(4)

                     Nível                                Núcleo[1]                                                Dependente

 

a) Sintagma                          possuído                              possuidor

                                                               nome                                     modificador (adjetivo)

                                                               adposição                             objeto de adposição

                b) Cláusula                           predicado                             argumentos e adjuntos

                                                               verbo auxiliar                       verbo lexical (principal)

                c) Sentença                          oração principal                   oração subordinada

 

3. A marcação morfológica em Aguaruna

 

                O Aguaruna é uma língua tipicamente sufixante, pois nela os morfemas se aglutinam a uma base para formar palavras. Essa característica morfológica é visível nas relações sintáticas que se dão entre núcleos e dependentes, sobretudo, quando se trata da relação entre: a) possuído e possuidor, b) nome e modificador, c) adposição e sintagma nominal, d) verbo principal e seus argumentos.

 

3.1.Sintagma possessivo

 

                A ordem dos constituintes no sintagma possessivo é Nome Possuidor + Nome Possuído ou Pronominal Possuidor + Possuído, como se vê nos exemplos a seguir:

(5)

 

a) yawáã      kuntujé   -  i)                                 ‘pescoço do cachorro’

                    cachorro  pescoço- 3poss

                b) pamáu      jínta  -  i)                       ‘caminho da anta´

                     anta    -   caminho – 3poss

 

Nesses exemplos, o marcador de posse {-i)} ‘3ª pessoa singular’ ocorre no elemento possuído, ou seja, no núcleo. Quando o possuidor é um pronominal, a marca de posse ocorre sempre no elemento possuído. Além disso, os pronominais de primeira, segunda e terceira pessoas do singular e primeira do plural levam o morfema {-na} ‘genitivo’, como se vê em (6):

(6)

 

 

                a) mi - na         duwapé  -   g               ‘minha pele’

                b) ámi – na       duwáp -  ju) – m      ‘tua pele´

                c) níi – na         duwáp  - j   -  i)        ‘sua pele (dele/a)’

                d) íi - na           duwáp  - j   -  i)         ‘nossa pele’

                    pron-gen       pele - posse – pessoa

 

3.2. Sintagma atributivo

 

Diferentemente do sintagma possessivo, os constituintes em construções do tipo núcleo e modificador ocorrem justapostos, não há marca específica para mostrar a relação de dependência, como registram os dados em (7):

(7)

                a) míshu   shuwín   waká  -  m   -   e     jegã  -  num

                    gato    preto     subir  -  pas  - 3sg   casa  -  loc

                     ‘o gato preto subiu na casa’

                b) núwa    kaámjauch      -  wa  -  wa  -  i       kanú  -  n

                     moça   magra-dim    leva – asp  -  3  - decl  canoa-acus

                     ‘a moça magrinha está levando a canoa’

                c) jutíi     ája    muun     áika -  ji

                    nós     roça  grande  fazer – 1pl

                    ‘nós fazemos roça grande’

 

Em (7), a relação entre o núcleo e seu modificador se dá sem nenhuma fusão ou alteração de seus constituintes. Como haver-se-á notado, a concordância de gênero e número, característica principal de línguas indoeuropéias, não é relevante para o Aguaruna. De fato, nessa língua não há marcas morfológicas para as categorias de gênero e número, o que explica porque nos dados de (7) os constituintes núcleo e modificador aparecem apenas justapostos e sem afixos morfológicos de concordância.

 

3.3. Sintagma adposicional

 

                Há três formas livres que podem ser tratadas como posposições em Aguaruna, a saber: wayã ‘debaixo de’, inítak ‘dentro de’, wãpken ‘debaixo de’. Entretanto, a ocorrência mais típica é a presença de sufixos que têm a função de marcar os casos morfológicos. Esses sufixos fazem as vezes que correspondem às preposições ou posposições de línguas como Espanhol e Turco, respectivamente. Os dados em (8) contêm sufixos presos aos nomes para indicar os casos: a) locativo, b) instrumental, c) ablativo.

(8)

 

                a) namák – num                                                   ‘no rio’

                    rio   -  loc

b) kanú    nma    shakam                                ‘na canoa também’

                    canoa – loc  -  aditivo

 

                c) kanú      g   -   jãi                                           ‘com tua canoa’

                    canoa - poss  -  instr

d) kayám      jãi                                                  ‘com areia’

    areia   -    inst

e) ikám  -            -   ina  -wa  -  i    ´(eles) estão chegando do mato’

    mato – abl    chegar - pl – 3  -  decl

f) jegã  -      jiiná  -  ina  -  ji                            ‘(nós) estamos saindo da casa’

    casa – abl    sair  -  pl   -   1

 

3.4 Verbo principal e seus argumentos

               

                Os argumentos nominais do verbo principal constituem seus dependentes, quando o dependente tem a função de argumento interno leva a marca {-n(a)} ‘acusativo’, quando o nominal é o argumento externo, este é marcado por {O} ‘caso nominativo’. Além disso, o verbo principal recebe os traços morfossintáticos das categorias número e pessoa para indicar a concordância com o seu argumento externo, como mostram o dados a seguir:

(9)

                a) yúmi - O       shiíg     kuwá   -   wa  -  i                    ‘a água está fervendo muito’

                   água - nom  intens    ferver   -   3  -  decl

                b) ámpi - O          ákik-chau    á  -  ina  -  wa  -  i       ‘os remédios não são caros’

                   remédio-nom  caro-neg     ser – pl  -  3   -  decl

                c) káshai - O      kuwáshat  yujúmka  -  n       yuw  -  ína – wa – i

                    paca  -  nom  intens       mandioca – acus  comer – pl  -  3  -  decl

                    ‘as pacas comem muita mandioca’

                d) Shímpu - O       yumí  -  n      wakéga – wa  -  i           ‘Shimpu quer água’

                     Shimpu - nom água – acus   querer  -  3  -  decl

 

Conclusões

 

                Meu objetivo neste artigo foi apresentar algumas das características morfológicas presentes na relação dos constituintes núcleo e dependentes. Os dados analisados parecem evidenciar que o Aguaruna está orientado para a marcação no núcleo. Contudo, no sintagma nominal o núcleo e seu modificador simplesmente ocorrem justapostos, sem marcas morfológicas de dependência. Por outro lado, na relação verbo principal e argumentos, são estes últimos que recebem o caso morfológico: {O} ‘nominativo’ para o argumento externo e {-n(a)} ‘acusativo’ para o argumento interno. Nessa mesma relação, o verbo principal exibe concordância da categoria número com seu argumento externo. Esses fatos colocariam o Aguaruna dentro do grupo catalogado como línguas de marcação cindida, ou seja, uma língua que tem o padrão de marcação ora no núcleo ora no dependente. Sem dúvida, conclusões mais seguras serão possíveis somente com estudos aprofundados da gramática dessa língua.

 

RESUMO: O presente texto trata das relações sintáticas entre um núcleo e seus dependentes em Aguaruna, uma língua indígena da família Jívaro. Quatro tipos de dependências são considerados: sintagma possessivo, nome e modificador, adposição e verbo principal com seus argumentos.

 

PALAVRAS-CHAVE: línguas indígenas; relações gramaticais; tipologia morfológica.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CIPOLLONE, Nick et alii. Language files. Materials for an introduction to language

    and linguistics. Ohio: Ohio State University Press, 1994.

CROFT, William. Typology and universals. Cambridge: Cambridge University Press,

      1990

NICHOLS, Johanna. Head-marking and dependent-marking grammar. Language

     vol.62, n. 2, p. 56-119, 1986.

TALLERMAN, Maggie. Understanding syntax.London: Arnold, 1998.

WHALEY, Lindsay J. Introduction to typology. London: SAGE Publications, 1997.

 

 

 

 

 

 



[1] Para Nichols (op. cit.:57) o núcleo é “the word which governs, or is subcategorized for – or otherwise determines the possibility of occurrence of – the other word”.