PURISTAS DE ANTIGAMENTE: O INGLÊS JÁ ASSUSTAVA

(Past time Brazilian purists: English influence also scared back then in the 1920’s)

 

Beatriz CHRISTINO (Universidade de São Paulo)

 

 

ABSTRACT: The current text evaluates how loanwords from English language were dealt in articles published in Brazilian linguistic journals in the 1920’s.

 

KEYWORDS: Linguistic Historiography; Loanwords; Brazilian linguistic journals; 1920's.

 

 

1.0 Nem só com o francês sofriam os puristas do século passado

 

Engana-se quem pensa que apenas a influência lingüística do francês incomodou aqueles que se empenhavam em defender a 'pureza' da língua portuguesa no início do século XX. Ainda que os galicismos fossem, sem sombra de dúvida, os empréstimos, então, mais combatidos e tidos como mais ameaçadores, outros estrangeirismos recentes chamaram a atenção dos puristas. Os empréstimos recentes eram, na percepção de muitos, indesejáveis. Segundo essa ótica, cumpria defender "a integridade da nossa língua contra toda contaminação estrangeira." (Barreto 1921: 177)

Qualquer empréstimo considerado 'desnecessário' recebia os rótulos de prejudicial, daninho, corruptor. Embora o conceito de 'necessidade' estivesse longe de ser objetivo e mensurável, só se tomavam como justificáveis os empréstimos sem um correspondente exato em português.

                Como pretendo mostrar, as 'formas estranhas' não se identificavam aos galicismos. Eram um conjunto maior que os continha. Descreverei, aqui, a maneira como os anglicismos foram percebidos em artigos de três revistas. Os periódicos selecionados se auto-definiam como especializados em questões lingüísticas e circularam durante a década de 1920. São eles: a Revista de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, 1919-1929, não-corrente, doravante RLP), a Revista de Filologia Portuguesa (São Paulo, 1924-1925, não-corrente, doravante RFP) e a Brasiliana (Rio de Janeiro, 1925-1928, doravante BR). Analiso aqui textos saídos em números publicados nos anos ímpares daquelas publicações.

Escolhi os anglicismos como objeto de estudo por dois motivos. Primeiramente, por sua importância nas discussões atuais que ressuscitam a preocupação com os estrangeirismos. Ninguém ignora que o inglês, nos dias que correm, é a língua de que mais adotamos palavras e expressões. Não por acaso, foi esse o idioma citado na "Justificação" do controverso "Projeto de Lei n.º 1676", de 1999, do Deputado Federal Aldo Rebelo. Interessou-me verificar que relevância os puristas da década de 1920 davam ao idioma que é o maior vilão para os nossos puristas do século XXI.

                A segunda razão nasce não da cena contemporânea, mas da própria natureza do material de análise. Levei em consideração todos os artigos que filiaram a outras línguas palavras e construções do português. Seis línguas e três grupos de línguas apresentaram porcentagem significativa de menções. De todas elas, a língua inglesa foi a quarta em número de artigos com ocorrências (num total de 18, ou 13% do total). Além disso, foi a terceira em número de autores que mencionaram a língua. No universo de todos os autores, os que fizeram referência a influências do inglês foram 20,9% do total. Em cada uma das revistas, encontrou-se uma quantia semelhante. Na RLP, eles foram 20%, na RFP, 18,2% e, na BR, 28,6%. Acredito que tais porcentagens não podem ser tomadas como desprezíveis e indicam que a influência do inglês não passava despercebida.

 

2.0 Anglicismos para brasileiro ver

                Os números citados no item anterior ganham mais relevância ao considerarmos que, quando se trata apenas da questão dos estrangeirismos recentes, os exemplos do inglês assumem a segunda colocação.

Embora fosse de menores proporções, o perigo da invasão dos anglicismos apresentava, para os puristas, a mesma natureza que fazia dos numerosos galicismos um vício tão condenável. Na realidade, em alguns contextos, palavras francesas e inglesas apareciam lado a lado, para tormento dos puristas. Por exemplo, um autor censurou "num catálogo de certa loja (...) para regalo dos apreciadores de estrangeirismos, a palavra barbouteuses entre muitas outras francesas e inglesas." (Barreto 1925: 185, grifo nosso)

                Se a moda importava algumas palavras inglesas, ela não era, entretanto, o domínio em que os empréstimos daquela língua européia predominavam. Para cada ocorrência localizada nos artigos, identifiquei a língua a que o autor a associara e o nível lingüístico a que ela pertencia. No grupo dos textos que mencionaram anglicismos, havia somente ocorrências de dois daqueles níveis lingüísticos: o lexical e o sintático.

Apenas um autor apontou casos de influência do inglês na sintaxe de nossa língua. Gomes (1925: 80) argumentou que combinações da feição de Rio Jornal, Rio Hotel e Comercial Club resultavam da 'infiltração' da construção inglesa. De acordo com ele, a anteposição do elemento modificador contrariava a maneira canônica da língua portuguesa para expressar a 'aposição específica'.

Os outros vinte e quatro exemplos de anglicismos reunidos eram vocábulos. Essa situação não deve causar espanto, uma vez que, sabidamente, o léxico é o nível lingüístico mais permeável à interferência de línguas estrangeiras. Para estabelecer uma comparação mais direta entre a maneira como os anglicismos recolhidos eram percebidos nas três revistas e a maneira como hoje são tratados, avaliei a data de entrada de cada termo e sua presença/ausência no Novo Dicionário Aurélio. Tal procedimento me possibilitou verificar se aqueles que pretendiam erradicar termos vindos do inglês tiveram sucesso em sua empreitada.

                A data de entrada dos termos em nossa língua permitiu sua divisão entre "antigos" e "modernos". Classifiquei como "modernos", os termos que ingressaram na língua no século XX. Das vinte e quatro palavras tidas como inglesas que arrolei, sete (ou pouco mais de 29% do total) são anteriores ao século XX. À exceção de iate, que teria entrado no português em 1640, nenhuma das palavras é anterior a 1844. Isso quer dizer que, na verdade, os anglicismos 'antigos' não eram tão 'antigos' assim.

                Apesar disso, bife, túnel e clube já eram palavras fora de suspeita, que não incomodavam aos autores dos artigos. O mesmo acontecia com bonde. Silveira (1921: 24) o destacava como um dos "vocábulos de criação nossa, do nosso meio, ainda que de fonte estrangeira" que contribuíam para dar uma feição particular ao português do Brasil. Para que seus conterrâneos pudessem compreender a motivação que convertera a palavra inglesa bond (do campo da economia e negócios) na denominação para um veículo de transporte coletivo, o português Ivo Xavier Fernandes (1884-?) escreveu um artigo contendo todas as etapas dessa transformação. Assim terminava seu raciocínio:

 

O uso consagrou o vocábulo com a indicada significação e já lá vão mais de cinqüenta anos durante os quais outra palavra se não ouve no Brasil (...)

Conveniente é acentuar que não deve usar-se da grafia bond, incompatível com a índole do nosso vernáculo, mas sim a forma bonde (com 'e' no fim), com[o] preceituam os mestres. (Fernandes 1925: 225-226).

 

Bonde não era a única palavra estrangeira para a qual os puristas exigiam a utilização de uma grafia (e de uma pronúncia) adequada à morfologia portuguesa. Pelo contrário. A obediência 'às leis da morfologia' funcionava como uma condição sine qua non para a legitimação das palavras e construções importadas (v. Bittencourt 1927: 67). Com um raciocínio desta ordem em mente, Nunes (1929: 62) respondeu a um leitor que indagou se o anglicismo whist deveria ser aportuguesado, usando as seguintes palavras: "Deve-se aportuguesar, como o aconselha CANDIDO DE FIGUEIREDO e o bom senso lingüístico: uíste". E é sob aquela última forma que a palavra figura no dicionário consultado.

Aliás, todas as palavras 'antigas' reunidas encontram-se listadas naquele dicionário. Conforme nos mostra o item a seguir, houve palavras mais recentes que não tiveram essa sorte. Outras delas, no entanto, passaram a fazer parte do nosso dia a dia. Querendo ou não os puristas.

 

3.0 Os recém-chegados da terra do foot-ball

                Dentre os vocábulos originários do inglês, ingressantes em nossa língua no século XX, que marcaram presença em artigos do corpus, estava bar. Palavra hoje considerada inofensiva, ela integrou uma lista com centenas de "estranjeirismos na linguagem theatral", de um estudioso que os julgava nocivos à nossa língua (Fernandes 1921: 167).

                Alguns artigos propunham explicitamente correspondentes vernáculos para estrangeirismos, na intenção de decretá-los 'desnecessários'. Um colaborador da RLP propôs a adoção de um neologismo, por ele criado, em lugar de recital. Solicinio, composto dos radicais latinos solus e canere, atendia ao "mui louvavel intuito de evitar o britannismo" (Kubitschek 1921: 174).

                Sem dúvida, a terminologia esportiva devia constituir uma grande dor de cabeça para os que desejavam provar que a língua portuguesa prescindia dos empréstimos recentes vindos da Inglaterra. Com efeito, boa parte dos anglicismos de última hora referidos nos artigos pertencia ao domínio dos esportes. Dos sete que localizei (cifra que significa 41,1% do total), nenhum ficou de fora da "(Reunião de cerca de mil e duzentas lacunas do Novo Dicionario da Lingua Portuguesa por Candido de Figueiredo)", feita por Taunay (1927). As palavras ali anotadas vinham acompanhadas por indicação de fonte, o que nos dá pistas acerca de seus contextos de utilização.

                Os verbetes prendiam-se às formas aportuguesadas (como nocaute, pingue-pongue e ringue), mas o autor fornecia sistematicamente o termo inglês original. Sem expressar qualquer juízo de valor, ele registrou "ESPORTISTA, s. m. Aportuguezamento de sportsman. Cf. Estado de São Paulo de 17-2-1924." Com a mesma isenção, pôs em letra impressa: "FUTEBOL, s. m. Aportuguezamento hoje corrente em todo o Brasil, de foot ball. Cf. E. de S. Paulo, de 17-2-1924."

                A atitude tolerante de Afonso de E. Taunay (1876-1958), em face dos anglicismos mais recentes, devia impacientar os puristas de carteirinha. Esses queriam combater o avanço de futebol, forjando um substituto legitimamente latino para nomear o jogo recém importado.

A seguir, transcrevemos a tentativa de um consulente da RLP, que não escondeu a repugnância que o anglicismo lhe causava.

 

FUTEBOL ou PEDIBOLA?

Futebol não deixa de ser uma monstruosa deformação da palavra inglesa football.

Porque recorrer a esse feissimo anglicismo, quando a nossa lingua fornece material sufficiente para nacionalizar esse vocabulo internacional?

Temos as composições: pedicura, pediforme, pedimano, pedipalpos, quadrupede. Por que, não querendo falar em football, porque não empregamos a palavra pedibóla (acento na penultima , cfr. lat. bulla [com u longo e a breve])? (Gonzaga 1921: 167-8, grifos nossos).

 

                Diante da utilizadíssima futebol, os neologismos criados pelos puristas chegam a nos soar cômicos. Seu esforço, evidentemente, foi em vão. No caso de palavras hoje esquecidas, também a decisão coube aos usuários da língua e passou ao largo das determinações dos puristas. Futebóller ¾ que Taunay (1927: 90) definiu como "Aportuguezamento de foot-baller, corrente, na imprensa paulista" ¾ não aparece no dicionário atual.

                A terminologia ligada aos esportes deixa entrever que os anglicismos eram, muitas vezes, importados à medida que se importavam os novos hábitos por eles denominados. Esse fato, comum na história dos contatos culturais entre civilizações, é confirmado por termos como escoteiro e escotismo. Ribeiro (1923: 113) expôs, motivado pela dúvida de um consulente, sua opinião acerca daqueles anglicismos. Em sua avaliação, ele reportou-se ao fascínio que as palavras estrangeiras exerciam. Recomendando a utilização de escolteiro, mais apropriado à língua portuguesa, reconheceu, no entanto, que o uso já consagrara escotismo e que, mais ainda, "um dos grandes elementos de exito nas coisas da moda é o peregrinismo".

                Os estrangeirismos (também chamados peregrinismos nos idos de 1920) acompanhavam e nomeavam os elementos da, por assim dizer, modernidade. Lutar contra a sua incorporação à nossa língua, de certa forma, equivalia a combater em defesa da tradição, em defesa de modos de vida que corriam o risco de desaparecerem (v. Björn e Shapiro 1989, sobre relações entre passadismo e purismo lingüístico).

                Jorge Guimarães Daupiás (1885-1947), português que viveu no Brasil e foi um dos principais colaboradores da RFP, lamentava o abandono da legítima tradição lusa e fazia das palavras estrangeiras um símbolo desse novo (e desprezável) modo de vida. Na sua argumentação, modernidade e estrangeirismos se interpenetram e são tomados como prejudiciais à identidade portuguesa.

 

Era antigamente o ideal dos fidalgotes da província terem bons garranos de passo travado (...) Hoje a rapaziada fina empinoca-se em cavalões irlandeses descrinados e derrabados, trota à inglesa, usa boné de pano com pala enorme a que chamam casquete, mete-se em calças bombachas à Chantilly, envolve as buchas das pernas não em polainas senão em leggins, substitui a vardasca pela cravache. Tudo uma estrangeirada. Ó manes de D. Duarte e Marialva! (Daupiás 1925: 62)

 

                O protesto de Daupiás indica que a perseguição aos estrangeirismos provinha de um setor da elite e se dirigia para a linguagem de outro setor dela ¾ "a rapaziada fina". E não poderia ser diferente. A massa de analfabetos que compunha as classes populares, no Brasil e em Portugal, dificilmente faria uso freqüente de palavras estrangeiras que vinham a reboque de hábitos refinados. A análise do perfil dos colaboradores da RLP, da RFP e da BR que mencionaram a existência de anglicismos no português corrobora que os puristas pertenciam à elite sócio-cultural. Dentre aqueles que expressaram um juízo negativo acerca de empréstimos da língua inglesa, cinco eram professores de instituições de renome (62,5% do total), como o Colégio Militar do Rio de Janeiro e a Escola Normal Secundária do Paraná, e um era padre. Dois autores tinham nascido em Portugal e, os demais, eram brasileiros. Todos igualavam-se no tocante à etnia: eram brancos. Para terminar esse breve retrato, sublinho que aqueles autores não se encontravam excluídos dos círculos de intelectuais mais importantes de sua época. Atuavam em academias regionais de letras ou, mesmo, em entidades de abrangência nacional. Eram membros do Instituto Histórico e Geográfico, dois deles. Quantia idêntica pertencia aos quadros da Academia Brasileira de Letras. Além disso, um deles ostentava o título de sócio-correspondente da Academia de Sciencias de Lisboa.

Minha investigação revelou, no entanto, que, a despeito de seu prestígio, os puristas não conseguiram impedir a consagração, pelo uso, de palavras como futebol e recital. Tão portuguesas, hoje, quanto quaisquer outras palavras de nossa língua.

 

RESUMO: O presente texto avalia a maneira como os empréstimos da língua inglesa foram abordados em artigos de três periódicos brasileiros especializados em estudos lingüísticos, publicados na década de 1920.

 

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia Lingüística; Empréstimos lingüísticos; Periódicos lingüísticos brasileiros; década de 1920.

 

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