A COERÊNCIA DO QUÂNTICO DOS CÂNTICOS EM GIL
(COHERENCE OF QUÂNTICO DOS CÂNTICOS, IN GIL)
Cláudia Valéria Penavel BINATO (UNESP-Assis)
ABSTRACT: the
song Quanta, by Gilberto Gil, may be analysed from its chorus “cântico dos cânticos, quântico dos quânticos” whose
syntagmatic oposition relates to the theme “science and art”, besides its
phonic similarity.
KEYWORDS: textual linguistics; coherence;
intertextuality.
0. Introdução
O processo de produção e compreensão textuais é objeto de estudo de um campo inter e multidisciplinar, formado por várias áreas do conhecimento como a Lingüística, a Psicologia, a Cognição, a Filosofia, a Sociologia, entre outras. Segundo Charolles, à Lingüística cabe especificamente delimitar, na constituição e composição de um texto, a parte e a natureza das determinações que resultam dos mecanismos existentes, nas diferentes línguas, para exprimir a continuidade ou a seqüência do discurso. Portanto, ainda a seu ver, o lingüista deve fazer a “análise das marcas de relação entre as unidades de composição textual que a língua usa para resolver, o melhor possível, os problemas de interpretação que seu uso possa gerar. Isto para além da generalidade dos processos psico e sociocognitivos que intervêm na interpretação (da coerência) do discurso” (apud Koch & Travaglia, 1999:45).
A noção de coerência, como um princípio de interpretabilidade do texto, está intimamente ligada não somente a processos de cálculo de significação, como também à capacidade de cálculo do receptor/interpretador, no âmbito da comunicação. Desse modo, a coerência, uma vez que depende da interação entre aquele que produz o texto e aquele que busca compreendê-lo, torna-se um elemento fundamental à concepção de textualidade
O nosso propósito neste trabalho é, pois, justificar as intenções do compositor Gilberto Gil em produzir a letra de Quanta, entendida como um texto, apenas porque aqueles que a recebem são capazes de percebê-la como uma unidade de sentido.
1. Textualidade e Coerência
A textualidade é a propriedade que um texto apresenta para ser considerado um texto e não um simples conjunto de palavras ou frases desconexas. Para tanto, existem certos padrões de textualidade centrados senão no próprio texto, também em seus receptores-leitores ou, ainda, na situação em que ocorre a relação entre texto e usuário.
Coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, informatividade, situacionalidade e intertextualidade são os modelos propostos por Beaugrande e Dressler. Esses padrões de textualidade, embora sejam apresentados de forma isolada, por razões metodológicas, se imbricam e podem, segundo Elias (1994: 159), ser resumidos em: coesão, estabelecida a partir dos mecanismos lingüísticos relacionais de superfície e coerência que abrange todos os demais padrões mencionados acima, incluídos os da focalização e da relevância, acrescentados teoricamente por Koch & Travaglia (1999) .
Ao compor a música em epígrafe, Gil, certamente, lançou mão de uma série de fatores para manifestar seu desejo de se comunicar. Deduzimos, primeiramente, que a configuração de linguagem em sua produção seja coesiva e coerente, a fim de orientar o ouvinte num determinado sentido (intencionalidade).
Por outro lado, o próprio receptor se predispõe a colaborar com seu interlocutor, aceitando, antecipadamente, o texto como uma seqüência lingüística marcadamente coerente, o qual apresente alguma utilidade, mesmo que seja, simplesmente, informá-lo ou compartilhar um propósito. Geralmente, é por esta aceitabilidade que pequenos deslizes gramaticais e descontinuidades de sentido, ainda que leves, possuem certo grau de tolerância entre os participantes de um discurso.
A informatividade é um importante controle da seleção lingüística e limitação textual. Esse arranjo de opções, mediante a continuidade temática e a progressão semântica, faz com que o produtor crie uma expectativa, motivando o interesse do leitor pelo seu texto.
No que diz respeito ao fator intertextualidade, percebemos que será imprescindível para análise em questão, o reconhecimento, por parte dos interlocutores, de um outro texto, ou seja, o do Cântico dos Cânticos. A alusão do título de tão conhecido texto bíblico faz parte do estribilho da música e não foi incluído por mero acaso pelo compositor.
Fica claro que a compreensão de uma inserção referente à outra fonte textual, com todas as suas respectivas implicações e relações semânticas, dependerá do repertório do leitor: ” quando coloco um trecho de um outro texto, no meu próprio texto, estou tentando pescar, na memória do meu leitor, o texto original.” (Abreu, 1989:46)
Relevante, pois, é a afirmação de que o receptor tem seu conhecimento de mundo ativado ao tentar entender a continuidade de sentido pretendida em Quanta. A partir da quantidade e qualidade de suas inferências, o sucesso dessa interpretação dependerá, sobretudo, do grau que esse conhecimento de mundo, além do lingüístico, é partilhado pelo produtor e receptor do texto. Para citar outro exemplo, é necessário ter a mínima noção de Física Quântica para percebermos o pensamento lógico e coerente de Gil na temática ciência e arte de seu poema.
A focalização também possui relação direta com a questão do conhecimento de mundo e do conhecimento partilhado, visto que em uma interação comunicativa todos os interagentes focalizam sua atenção em pequena parte do que sabem e acreditam, e a enfatizam (Koch & Travaglia,1999:82). É por isso que pode haver diferentes leituras de um mesmo texto, dependendo do interesse de cada leitor: a leitura feita por um crítico, ou por um físico, ou por um artista, ou por um religioso, ou por um leigo, tende a ser, até mesmo, divergente pelas perspectivas e histórias de cada um. Em nosso caso que trabalhamos com a Língua Latina, o título da música, sintetizada no plural latino Quanta, despertou nosso interesse: o que Gil tem a falar em relação ao latim?
Isso posto, concluímos que o fato de um texto ser aceito ou não como tal, pode depender, além da correção de sua referência ao mundo real, também da sua credibilidade e relevância para as expectativas dos participantes em relação a uma determinada situação. Portanto, a continuidade de sentidos perceptível no texto de nossa análise foi possível, mormente, pela coerência estabelecida pelo produtor do texto, nesse caso a música, a fim de orientar seu público-ouvinte na interpretação apropriada de seu intento.
2. Quanta
Gilberto Gil reúne, no álbum Quanta (1997), vinte e cinco (25) músicas, sob os eixos temáticos: ciência e arte, religião e medicina, tecnologia e magia. É também Quanta a responsável por um dos grande momentos do disco: o dueto de Gil com Milton Nascimento.
Essa música-tema pode ser discutida a partir de seu refrão Cântico dos cânticos, quântico dos quânticos onde a oposição dos sintagmas, além da semelhança fônica, diz respeito à temática ciência e arte presente ao longo de todo poema. Inspirado nas partículas subatômicas da Física Quântica e com muita licença poética, Gil cria espaços para a apresentação da progressão dialética do pensamento, versejando ora sobre o material, o lógico e o científico, ora sobre o amor, o artístico e o espiritual.
Para dar início à análise propriamente dita, faz-se necessária a apresentação dos conceitos extraídos do Dicionário Aurélio de Quanta, Mecânica Quântica e de Quantum, para podermos compartilhar, ainda que minimamente, do repertório enciclopédico do produtor do texto.
Quântico: relativo à hipótese dos quanta.
Quanta: Fis. Quantidades elementares, nas quais, segundo a teoria do físico alemão Planck (1858-1947), devem considerar-se divididas certas grandezas tradicionalmente dadas como contínuas, tais como a luz e o tempo.
Mecânica Quântica: parte da física
em que se investigam os fenômenos ocorrentes com partículas, átomos e
moléculas, e em que, abandonando-se a admissão clássica da continuidade dos
processos subatômicos, se aceita a ocorrência de fenômenos discretos
quantificados.
Quantum: quantidade indivisível de energia eletromagnética.
Na apresentação do álbum de Gil, o físico César Lattes (1997) define o sentido que a física dá atualmente aos termos científicos:
O
infinitésimo é uma ficção matemática. Quantum é o mínimo de ação (energia x tempo).
O Quantum de ação é o mais real do que a maioria das grandezas físicas: seu
valor não depende do movimento em relação ao observador.
Partindo desses princípios , podemos dizer que o compositor, quando utiliza o vocábulo Quantum, refere-se à noção de partícula mínima, porém fundamental. É a base, que de tão pequena é o início, é o fundamento da existência de qualquer ser, de qualquer coisa, enfim, por menor que seja, sem ela nada pode existir.
Quanta do latim
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Outra inferência que pode ser feita por esses versos é que Quantum não trata de quantidade numérica apenas, mas sim de substância, de relevância. É de se notar a seqüência de aliterações ao longo de todo poema.
Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado do mel
Quantum ondulado do sal
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase ideal
De tão infinitésima é a partícula que ela se torna abstrata, sendo possível captá-la somente por abstração; qualquer coisa possível de existir apenas na idéia, na mente. O átomo que é capaz de formar, em grande quantidade, o granulado do mel e o ondulado do sal. O que leva, pois, o autor a comparar duas substâncias tão básicas e corriqueiras da vida? O doce do mel está presente no sabor agradável dos alimentos e na doçura que se espera dos bons momentos da vida. O sal, por sua vez, não deixa o alimento insípido. Mel de urânio, sal de rádio: a química, a ciência também presentes no dia a dia. Quanta, quantidades divididas indefinidamente a ponto de nem mais haver o que dividir e em que ver qualidade: imagina-se na gota do mel, busca-se no salso ondeado, mede-se no elemento que se desfaz imitindo calor, calcula-se na potência das ondas radioativas.
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Esse sonoro jogo de palavras é o estribilho da música que, repetido mais duas vezes, serve para explicitar a temática proposta pelo autor do texto: ciência e arte. Essa variação sintagmática diz respeito, no primeiro verso, ao cântico bíblico, o mais belo e delicado cântico que celebra o amor de dois amantes: um homem e uma mulher. Porém, pode ser igualmente interpretado pelo simbolismo do amor de Deus, pelo fato de não existir amor maior que o amor no seio da Trindade. Deus é amor e amor, o máximo na criação. Já o segundo verso, trata sobre a menor das partículas, que é todavia de imensurável importância. Dessa forma, essas riquezas semânticas vão concatenar as idéias de que o amor é o fundamental indispensável, pois, na sua ausência, nada pode existir.
Canto de louvor
De amor ao vento
Vento arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
Vento de calor
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o saber
Arte, descoberta, invenção
Teoria em grego quer dizer
O ser em contemplação
O estribilho resumitivo separa o pensamento dialético de Gil que, na primeira parte da música, faz referência ao científico e, na segunda, ao amor e, por conseguinte, à arte. Canto de louvor, de amor ao vento, uma vez que quem ama enaltece a pessoa amada. O amor, eternizado no poema de Camões, não se oculta, é canto jogado ao ar. A força do amor é como a força do próprio vento. Já dizia um ditado latino: tussis et amor non celatur, ou seja, amor e tosse não se escondem. O apaixonado é capaz de todos os malabarismos inimagináveis, porque tem o coração crepitante, o pensamento abrasado. Tudo é lírico, tudo é poesia, tudo é arte. O amor é fonte de inspiração: faz brotar a arte, faz nascer o saber. Todo aquele que ama quer conhecer profundamente a pessoa ou o objeto amado, logo, o saber é também fruto do amor à ciência e à arte. O autor não foi muito exato, porém, na definição de teoria que, na realidade, significa contemplação, mas ao se referir a ser que contempla praticamente diz a mesma coisa. Teoria, assim, é a arte da contemplação.
Sei que a arte é irmã da ciência
Ambas filhas de um Deus fugaz
Que faz num momento
E no mesmo momento desfaz
Esse vago Deus por trás do mundo
Por detrás do detrás
O mesmo Deus, que faz do vento
arte do ar e inspira o homem a criar, é fugaz
(do latim fugere = fugir). Por
isso, esse Deus facilmente escapa a nossa compreensão. Apesar de
Sua onisciência e Sua onipresença, deixou-nos o livre arbítrio, assim, Ele, como que assistindo a tudo e a todos,
está por trás do que se passa não somente na mente humana, mas
também nos acontecimentos do mundo. Enfim, é por inspiração divina que o
homem pode fazer e desfazer ciência e arte.
Terminamos essa análise citando as palavras de César Lattes (1997):
A ciência é uma irmã caçula
(talvez bastarda) da arte.
Camões pediu ajuda do
engenho e da arte – não da ciência.
Salomão diz que “ ciência sem
consciência não é senão a ruína da alma” – a arte, não.
Paro por aqui, porque Salomão também diz: “ Não busques ser demasiado
justo nem demasiado sábio: queres te arruinar ? ”
Para concluir cito um grande arquiteto: “ Quando
a ciência se cala, a arte fala.“ (Artigas)
RESUMO: a música Quanta, de Gilberto Gil, pode ser discutida a partir de seu refrão “Cântico dos cânticos, quântico dos quânticos”, onde a oposição dos sintagmas, além da semelhança fônica, diz respeito à temática “ciência e arte” presente ao longo de todo o poema.
PALAVRAS-CHAVE: lingüística textual; coerência; intertextualidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Antônio Soares. Curso de Redação. São Paulo: Ática, 1989.
ELIAS, Regina Maria Pessoa. A organização do texto: Um Estudo das Relações Produtor-Produto. Araraquara, 1994. 266p. (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa). Faculdade de Ciências e Letras. Unesp.
KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997 (Caminhos da Lingüística)
KOCK,
Ingedore G. Villaça, TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e Coerência. 6 ª ed. São Paulo: Cortez, 1999.