UM ESTUDO SEMIÓTICO DE O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA  DE JOSÉ SARAMAGO

(A SEMIOTICS STUDY OF O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA BY JOSÉ SARAMAGO)

 

 

Fernando de Moraes GEBRA (PG-UEL)

 

 

ABSTRACT: The present work makes use of some concepts from the theory called French Semiotics, specially in  how this theory stablishes the generative process of the senses. We show in the present work, based in the discoursive focus, how the sense relations are structured and organized in O conto da ilha desconhecida by José Saramago.

 

 

KEY-WORDS: French Semiotics; Saramago; O conto da ilha desconhecida; Portuguese Narrative

 

 

0. Introdução

 

 

A convite dos responsáveis do Pavilhão de Portugal para a EXPO 98, José Saramago escreveu O conto da ilha desconhecida, utilizando técnicas narrativas comuns nos seus romances tais como: diálogos separados por vírgula, uso da linguagem popular, carnavalização de personagens, ou seja, inversão de valores tradicionais, e uso de alegorias. É justamente sobre o uso das alegorias, consideradas pela Semiótica Greimasiana como figuras, é que proponho a análise deste conto instigante até desvendar o nível fundamental do texto, que é onde está escondida a mensagem do narrador do conto. O que poderia se apresentar como apenas a história de um homem que busca encontrar uma ilha desconhecida, revela-se, quando se organizam os percursos figurativos presentes no texto, uma mensagem de significação especial assumida pelo enunciador.

Convém ressaltar que será feita a análise do conto por meio dos elementos teóricos de todo o percurso gerativo, entendido como uma sucessão de patamares , que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo. (FIORIN, 2001: 17). Como se sabe, são três os patamares: o nível fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. Cada nível apresenta uma sintaxe e uma semântica. Neste conto, apesar de analisarmos os três níveis, será dada ênfase às oposições discursivas presentes no texto, ou seja, como os discursos das personagens revelam seus valores ideológicos. É claro que também serão utilizados elementos da semântica discursiva para analisar os percursos figurativos até chegarmos à estrutura profunda para compreendermos os valores do conto que se opõem, gerando efeitos de sentidos aos leitores do mesmo.

 

 

1. Análise

 

 

 Para um leitor menos atento, o enredo do conto seria o seguinte: um homem bate à porta das petições de um rei preocupado apenas em receber favores. Tal homem exige falar com o rei e, após três dias, consegue falar com ele e lhe pede um barco para ir em busca de uma ilha desconhecida. O rei tenta negar conceder o pedido, alegando que já não há mais ilhas desconhecidas. Por fim, após as insistências do homem e das demais pessoas, o rei lhe dá um cartão que deveria ser entregue ao capitão do porto. Quando o homem chega lá, o capitão tenta colocar empecilhos à viagem do homem, dizendo-lhe que não há mais ilhas desconhecidas e que não é aconselhável ir ao mar quem não sabe navegar. Neste ínterim, a mulher que atendia à porta das petições resolve abandonar tudo e seguir o ideal deste homem, visto pelos outros como maluco. Enquanto o homem procura por tripulantes, a mulher limpa o barco, livrando-se das gaivotas que ali se encontravam. Como o homem não encontra tripulação, começa a ficar desanimado. A mulher tenta animá-lo e, com o tempo, começam a se interessar um pelo outro. Dormem separados no barco, o homem sonha que o barco tinha tripulantes, que estes o abandonaram por não terem os mesmos ideais que ele, e o barco começa a transformar-se em ilha. Após isso, o homem acorda abraçado à mulher.

Todavia, uma análise mais atenta não deixaria de aliar esta estrutura superficial a algumas passagens do conto que levariam diretamente a sua estrutura profunda. O conto pode ser dividido em três partes, de acordo com o programa narrativo (PN) da personagem masculina. Num primeiro momento, o homem está privado do objeto modal, o barco, necessário para se chegar à ilha desconhecida. Num segundo momento, após suas insistências (verificação da sua competência enquanto insistente em seu discurso), o homem recebe o barco (aquisição transitiva ou por doação). Num terceiro momento, o homem já está em conjunção com o objeto valor barco, e apesar de acreditar precisar de tripulantes, alcança o objeto valor, a ilha desconhecida.

Ao analisar a personagem rei, percebe-se que ele só se preocupava em acumular bens materiais, uma vez que não atendia a porta das petições, mas sim a dos obséquios, o que vemos em “... era o rei, dado que, sendo menos numerosa a gente que o vinha incomodar com lamúrias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar obséquios.” (1997:137). Percebe-se pela figura do rei, a crítica que o narrador faz à classe dominante que ocupa o poder, que, para atender a um pedido de um membro da população, o faz por meio de vias burocráticas. Quando há muita pressão popular, os governantes resolvem atender as reivindicações do povo, o que vemos em “... foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas competentes vias burocráticas” (1997:137). Ao questionar a existência de ilhas desconhecidas, o rei recebe do homem a seguinte resposta: “Que tu, sem eles, és nada, e que eles sem ti, poderão sempre navegar. (1997:138)  Nesta passagem, numa atitude carnavalesca, o narrador utiliza-se do discurso direto da personagem para diminuir a importância do rei.

 Ao analisar a mulher que limpava e abria as portas do palácio do rei, percebe-se que seus ideais coincidem com os do homem que conseguiu o barco. Ela sai do palácio pela porta das decisões e resolve acompanhá-lo, rumo ao desconhecido, o que se vê em "E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos.” (1997:140) A figura das portas do palácio remete ao mundo já conhecido pela mulher, ao passo que  a figura barco remete ao mundo desconhecido. Mesmo com as dificuldades surgidas (falta de tripulação), a mulher da limpeza continua com o seu ideal de percorrer o desconhecido, tenta, inclusive, animar o homem quando este começa a ficar desanimado por não ter conseguido tripulação, o que vemos em “É bonita, disse o homem, mas se eu não conseguir arranjar tripulantes suficientes para a manobra, terei de ir dizer ao rei que já não a quero, Perdes o ânimo logo à primeira contrariedade.” (1997:141)

 Pelo discurso do homem, percebe-se mais claramente o desejo pelo desconhecido, o que vemos em “... mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver... Se não sais de ti, não chegas a saber quem és”(1997:141). Esta passagem organiza sentidos dispersos na superfície do conto, pois aproxima o sentido da ilha desconhecida com o ser humano, ou seja, a necessidade de sairmos de nós mesmos para saber quem somos. A viagem pelo mar dos meandros do eu representa o objeto modal para o alcance do valor que é a descoberta de quem somos. O homem acrescenta que “... é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós” (1997:141) Por esta passagem fica evidente o que discorremos acima. Sair da ilha refere-se deixar o mundo conhecido para ver a ilha, ou seja, o mundo desconhecido, o nosso interior.

O discurso do homem está em oposição a outro discurso, o das pessoas que temem o desconhecido, figurativizadas, aqui, pelos tripulantes. O discurso dos tripulantes se dá indiretamente, uma vez por via do homem e duas vezes por via do narrador no sonho do homem. O primeiro caso pode ser visto em

 

 

“Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira, para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso.”(1997:141)

 

 

Percebe-se aqui, que para evitarem sofrimento e para permanecerem no conforto, as pessoas preferem não procurar conhecer seu interior. O segundo caso do discurso dos tripulantes pode ser visto em

“O homem pergunta aos marinheiros que descansam na cobertura se avistam alguma ilha desabitada, e eles respondem que não vêem nem umas nem outras, mas que estão a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que lhes apareça, desde que haja lá um porto onde fundear, uma taberna para beber e uma cama onde folgar ...” (1997:143).

 

 

Percebe-se aqui as necessidades materiais, o que é conhecido  do ser humano (poder figurativizado por porto a ser fundado, prazer, figurativizado por bebida, e descanso, por cama), em oposição às necessidades espirituais (figurativizado no conto pela busca da ilha desconhecida).

O terceiro caso do discurso dos tripulantes pode ser constatado em

 

 

“... fosse como fosse era natural que ali estivessem, imaginemos que a ilha desconhecida é, como tantas vezes o foi no passado, uma ilha deserta, o melhor será jogar pelo seguro, todos sabemos que abrir a porta da coelheira e agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais fácil do que persegui-lo por montes  e vales.” (1997:142)

 

 

O narrador também cita este discurso por via indireta, mostrando, por meio da comparação da caça ao coelho, que, para muitos, é o conhecido que representa segurança, figurativizado aqui pela coelheira, enquanto o desconhecido representa  insegurança, figurativizado aqui pelos diferentes caminhos (montes e vales) que um coelho pode percorrer para fugir do caçador. Este trecho, de forma sutil, menciona o passado das grandes navegações, da descoberta de ilhas desertas, opondo, assim, o discurso dos tripulantes com o ideário das grandes navegações dos séculos XIV, XV e XVI, que valorizava o desconhecido, o ainda inexplorado pelo homem.

Como vemos, há no conto dois discursos em oposição: o daqueles que temem o desconhecido e o dos que o buscam, daí a impossibilidade de um acordo do homem com os tripulantes durante o sonho e durante a realidade. No entanto, no conto prevalece a valorização do mundo desconhecido, pois com a reunião dos desejos de descobertas do homem e da mulher da limpeza, ocorre algo insólito: a caravela se transforma em ilha, revelando o alcance do objeto valor do nível narrativo que, no nível fundamental , seria o valor eufórico. Tal fato pode ser visto em

 

 

“As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela a seu destino. É uma floresta que navega que navega e balanceia sobre as ondas.” (1997:143)

 

 

A transformação da  caravela em ilha metaforiza a transformação tanto do homem quanto da mulher que alcançam um ao outro, o que vemos em “Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os bordos. (1997:143) No entanto, o maior alcance é o que cada um faz a respeito de si mesmo, a constante busca do interior de cada um, o que vemos em “A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”(1997:143)

 

 

2. Considerações finais

 

 

         Podemos concluir que no conto permanece a constante busca, tanto do homem como da mulher da limpeza. Tal busca é comparada às navegações, pois é preciso esforço e tempo para chegarmos a quem realmente somos. O conto da ilha desconhecida apresenta a atualização da dicotomia exterior versus interior em programas narrativos de personagens representativas de dois discursos, o da conformidade com o já conhecido e o do ideal de descoberta rumo ao desconhecido. Dessa forma, o narrador opõe o discurso daqueles que só se preocupam com o já conhecido, com o acúmulo de bens materiais (o rei e os tripulantes, por exemplo), com o daqueles que buscam seu interior (homem e a mulher da limpeza) Tal interior, muitas vezes, nos é desconhecido e, mesmo trazendo sofrimentos para o sujeito, fá-lo ser um eterno navegante de si mesmo.

 

 

RESUMO: A análise contida neste trabalho faz uso de conceitos da teoria Semiótica Greimasiana, com particular atenção para o modo como essa teoria estabelece o percurso gerativo do sentido. Busca-se, assim, mostrar, com base no enfoque discursivo, como se estruturam e se organizam as relações de sentido em O conto da ilha desconhecida de José Saramago.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Semiótica Greimasiana, José Saramago, O conto da ilha desconhecida, Narrativa Portuguesa

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso.10 ed.  São Paulo: Contexto, 2001. (Repensando a Língua Portuguesa)

VEJA. O Conto da ilha desconhecida. Veja, 24  dez. 1997. Seção Especial, p.136-43.