PARA UM ATLAS LINGÜÍSTICO DO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DOS QUESTIONÁRIOS

(TOWARDS A BRAZILIAN LINGUISTIC ATLAS: THE CONSTRUCTION OF QUESTIONNAIRES)

 

Janaína Gabriel da Silva KAMI (Universidade Estadual de Londrina)

Vanderci de Andrade AGUILERA (Universidade Estadual de Londrina)

 

ABSTRACT

This paper addresses the construction of questionnaires that will allow the collection of data for the Brazilian Linguistic Atlas project (ALiB). Special emphasis is placed upon the building up of questions and piloting in several Brazilian regions.

 

KEYWORDS: questionnaires, Brazilian Linguistic Atlas, building.

 

0. Apresentação

À primeira vista parece simples e fácil a adoção ou construção de um questionário dialetológico e/ou geolingüístico, porém a prática tem demonstrado as asperezas de todo o processo, ainda mais em se tratando de um instrumento de coleta de dados elaborado para todas as regiões brasileiras, com o objetivo de se construir o Atlas Lingüístico do Brasil (ALiB).

O Projeto ALiB, lançado na UFBA em novembro de 1996, estabeleceu, dentre outros objetivos[1]:

a) Descrever a realidade lingüística do português do Brasil com vistas a identificar fenômenos fonéticos, morfossintáticos, lexicais, semânticos e prosódicos característicos da diferenciação ou definidores da unidade lingüística no território nacional.

b) Estabelecer isoglossas com vistas a traçar a divisão dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferenças regionais através de resultados cartografados em mapas lingüísticos e de estudos interpretativos de fenômenos considerados.

c) Registrar, com base na análise em tempo aparente, processos de mudança.

d) Identificar fenômenos lingüísticos localizados e específicos de áreas com vistas a estudar as suas repercussões no ensino-aprendizagem da língua materna.

e) Examinar os dados coletados na perspectiva de sua interface com outros ramos do conhecimento - história, sociologia, antropologia –, com vistas a fundamentar e definir posições teóricas sobre a natureza da implantação e desenvolvimento da língua portuguesa no Brasil.

f) Contribuir para o entendimento da língua portuguesa no Brasil como instrumento social de comunicação diversificado, possuidor de várias normas de uso, mas dotado de uma unidade sistêmica.

Para a consecução desses objetivos, ao contrário de outros atlas regionais brasileiros, que adotaram um único instrumento de coleta de dados, foram elaborados os Questionários do ALiB (Comitê Nacional do ALiB, 2001), constando de: (a) Questionário fonético-fonológico - QFF- que inclui questões para apuração de diferenças prosódicas. (b) Questionário semântico-lexical - QSL; (c) Questionário morfossintático - QMS; e (d) questões referentes à pragmática, assim como sugestões de temas para o registro de discursos semi-dirigidos e texto para leitura. 

A partir da delimitação dos objetivos, tornou-se importante analisar a realidade sócio-econômico-cultural brasileira para se definir o perfil do informante e o elenco das localidades a serem investigadas, e, conseqüentemente, o instrumento de coleta de dados. Se os Atlas regionais, como os Atlas da Bahia, de Minas Gerais, da Paraíba, de Sergipe, do Paraná, seguiram o método da Geografia tradicional, privilegiando o falante rural, do sexo masculino, não escolarizado, único por localidade, o ALiB dá um passo à frente, associando à orientação dialetológica tradicional os postulados da sociolingüística rumo a um Atlas pluridimensional. Acrescente-se que o indicativo de que cerca de 80% da população concentra-se hoje em torno das grandes cidades, chegando em algumas delas, como o caso de Campinas, a 98%, não haveria sentido fazer-se um Atlas nacional rural. Além do mais, é provável que nem mesmo se encontrem os informantes com esse perfil em todas as localidades. Isto não significa que Atlas estaduais não devam voltar-se para a descrição da fala rural. Ao contrário, é urgente que cada Estado execute o seu próprio Atlas, que registre as especificidades de cada região, aproveitando o pouco que resta da história, dos costumes e das tradições de nossos ancestrais, que documentam a história da língua portuguesa no Brasil.

Para a elaboração dos questionários, indagações sobre o quê, como e quanto perguntar nortearam todo o processo, desde a análise de questionários dialetológicos nacionais e estrangeiros, passando pelas aplicações experimentais e reformulações advindas dessas aplicações, até o produto final.  Foram três versões editadas, dezenas de outras impressas e copiadas para estudos e reestruturações, quase duas centenas de aplicações experimentais em diversos pontos do país, desde o Oiapoque (AP) até os extremos do Rio Grande do Sul, para se certificar da pertinência e viabilidade de cada questão. Os resultados dessas aplicações eram levados aos encontros do Comitê Nacional e aos workshops com pesquisadores das várias instituições de ensino superior com o propósito de se aperfeiçoar sempre mais cada questão.

Às aplicações seguiram-se, também, estudos críticos para verificar a compreensibilidade de cada questão e apresentar propostas de reformulação. Pontes e Aguilera (1999, p. 238-244) detectaram nesses testes cerca de 18% das questões com dificuldades para a compreensão e conseqüentemente para o registro das respostas. Tratava-se de três ordens de dificuldades: (a) questões que necessitavam de um complemento para que o conceito pudesse ser decodificado, atendendo-se ao conhecimento de mundo do falante com maior experiência em trabalho rural; (b) itens lexicais da questão que precisavam ser substituídos para dirimir a ambigüidade sugerida pela proposta inicial por remeterem a conceitos distintos; (c) perguntas longas dificultando a apreensão imediata do objetivo do inquiridor. Com base nessas observações e outras levantadas pela equipe, foram feitas as devidas reformulações, dando origem à versão 2001 dos Questionários, atualmente servindo como instrumento de coleta de dados nas entrevistas definitivas do ALiB.

 

1. O questionário fonético-fonológico

O QFF, na versão 2001, contém 159 questões, pelas quais se procurou contemplar todos, ou quase todos, os fatos lingüísticos que apontam para variações diatópicas, diastráticas e diacrônicas, já descritas, no falar brasileiro. Entre outros, formularam-se questões para se apurar a variação das vogais quanto à altura, abertura, grau de nasalidade, ditongação, apagamento, em várias posições dentro do vocábulo (por exemplo: terreno, caminha, televisão, luz, elétrico, gordura, grelha, almoço, árvore, pólvora, peneira), dos ditongos ai, ei, ou (peneira, caixa, loira/loura, tesoura/tesoira/tesora, mateiga/mantega); das consoantes, dígrafos e encontros consonantais, como /b/; /v/; /s/ e /r/ em vários pontos da cadeia fônica; /t/ e /d/ seguidos de e e i; /t/ e /d/ precedidos ou não de iode (varrer, tomate, casca, milho, placa, bicicleta, doida, leite, muito, peito, liquidificador, abelha, colher, pneu, aftosa); terminações do gerúndio e do infinitivo de verbos (fervendo, remando, vomitar, botar).

Para a seleção das variantes lexicais a serem investigadas, vários cuidados foram tomados: o referente pesquisado deveria fazer parte de quase todos os contextos regionais, portanto, partilhar, teoricamente, do conhecimento de mundo de qualquer falante brasileiro urbano; a formulação de cada questão deveria estar suficientemente clara para não suscitar um outro referente que não fosse o pesquisado; o investigador deveria dominar ou pelo menos conhecer um grande número de variantes fonéticas e conhecer a cultura local para poder substituir uma formulação inadequada na região por outra mais justa. Por exemplo, constatou-se que, pelo menos em Maceió (Harumi et alii: 2002) e Belém, a abóbora que no sul, sudeste e centro-oeste é consumida sob a forma de doces, naquelas capitais, é preparada em cozidos de carnes ou no feijão.

Algumas questões deixaram de ser respondidas ou necessitaram de inúmeras reformulações durante a entrevista. Por exemplo, em Cuiabá, quanto à questão 138 do QFF, que busca as variantes para doido, apenas um dos cinco informantes correspondeu a essa expectativa; os demais registraram louco, maluco e doente mental. Da mesma forma, a questão 82, para início: o informante compreendia bem o teor do questionamento, porém registrou apenas os sinônimos como começo, princípio, origem, formas que, para o objetivo desta questão no QFF, não são relevantes. Outro item lexical difícil de ser elicitado tem sido grelha (QFF-Q.23) em que muitas vezes o informante não compreende a pergunta, e outras, desconhece o referente que é descrito como: uma grade de metal ou de ferro, que se coloca em cima da churrasqueira ou da brasa  para assar carne, frango. Outras questões, entretanto, oferecem um mínimo de dificuldade, como a de nº 3, cuja resposta almejada é prateleira. A pergunta inicial é... aquilo assim (mímica), onde se colocam objetos em casa (latas de mantimentos na cozinha, enfeites na sala...) ou produtos para vender nos supermercados, mercearias, etc.? Normalmente o informante responde, de imediato, armário, estante, guarda-comida para, após reformulações, registrar prateleira/partilera.

 

2. O questionário semântico-lexical

 

A versão definitiva do Questionário Semântico-Lexical (QSL) do ALiB, de 2001, consta de 202 questões envolvendo 14 campos semânticos: dos acidentes geográficos (6 questões), fenômenos atmosféricos (15 questões), astros e tempo (17) atividades agropastoris (25), fauna (25), corpo humano (32), ciclos da vida (15), convívio e comportamento social (11), religião e crenças (8), jogos e diversões infantis (13), habitação (8), alimentação e cozinha (12), vestuário e acessórios (6) e vida urbana (9).

Neste instrumento, ficou mais evidente a preocupação do ‘quanto’ perguntar. É uma indagação recorrente feita aos membros do Comitê, haja vista a extensão dos primeiros atlas europeus, cujo elenco varia de 1980 (Atlas Linguistique de la France) a 5000 perguntas (Atlas Lingüístico da Romênia). Nesta esteira, tanto Silva Neto (1957) como Nascentes (1958 e 1961) arrolam entre 1100 e 1200 itens lexicais a serem investigados na elaboração de um Atlas Lingüístico do Brasil. Conforme já se expôs em outras oportunidades, a equipe coordenadora está convicta de que o mais importante não é o número de questões a ser proposto, mas a qualidade dessas questões e a possibilidade de um aproveitamento mais significativo de todas ou, pelo menos, da maioria delas no momento da cartografação. Pretende, pois, evitar no ALiB o que ocorrera nos atlas estaduais e regional já mencionados, isto é, a desproporcionalidade entre a extensão do questionário e o número de itens cartografados. Se os autores descartaram em média mais de 50% das questões, chegando até a 90%, o bom senso sinaliza que um atlas nacional representativo não tem necessariamente que ter um questionário com milhares de perguntas. A equipe privilegiou a qualidade e o resultado final em detrimento da quantidade, concordando, a propósito, com a crítica de Pickford sobre os primeiros resultados do LANE, Linguistic Atlas of New England, citada por Brandão e Morais (1998). A autora americana questionou a cientificidade desse Atlas americano primeiramente devido aos problemas decorrentes de questionários de grande extensão por fatigarem o informante principal, levando o pesquisador a lançar mão de informantes eventuais ou secundários. Em última instância, um questionário menos extenso pode representar economia de tempo, de recursos materiais e financeiros e garantia de maior sucesso.

Além do mais, a experiência com as entrevistas do ALiB tem confirmado que o sucesso do Questionário centra-se fundamentalmente na figura do entrevistador, certificando-se antecipadamente da disponibilidade do informante não só de tempo mas de vontade de participar; entra em jogo a sua capacidade de envolver o informante, transformando as três ou quatro horas de entrevista em espaço para uma conversa amena, informal e prazerosa para ambos, como tem sido na maioria das entrevistas até então realizadas. 

 

 

3. O questionário morfossintático

Dentre os três Questionários, o QMS foi o que mais suscitou discussões devido às dificuldades apresentadas em sua aplicação. Procurou-se incansavelmente descaracterizá-lo da espécie de teste ou prova escolar de que se revestia desde o início, o que, até então, impedia o informante de responder com um grau de espontaneidade que se pudesse considerar razoável, inibindo-o, na maioria das vezes. Somente a partir do 2º workhop, realizado em Londrina, em julho de 2000, é que se chegou a uma proposta que foi aceita com menos resistência pelos pesquisadores. Colaborou para isso a inserção de gravuras para apurar gênero e número de determinadas palavras e a proposta de questões para um tom mais conversacional que inquiritório, tornando menos áspera essa fase de aplicação. Da versão final constam 49 questões para a apuração de fatos morfossintáticos da língua portuguesa do Brasil, dentre os quais citam-se: emprego de artigo diante de nomes próprios, gênero e número dos substantivos e adjetivos; grau comparativo de superioridade dos adjetivos grande, pequeno, bom e mau/ruim; emprego de pronomes: eu/mim, tu/você, nós/a gente; a dupla negação, entre outros.

 

4. Outros questionários

 

Constam ainda dos Questionários 2001 três questões de pragmática, com simulação de situações que prevêem o emprego de vocativos, como tio/ tia; senhor/ senhora, dona; moço/moça. Seguem-se os temas para discursos semidirigidos com quatro propostas: relato pessoal, comentário, descrição e relato na pessoal. Trata-se de um momento que se espera descontraído para se confirmarem ou não questões propostas no QFF e QMS e até do QSL. Ilustra-se com dados de uma informante de nível de escolaridade superior que, na questão do QMS para o emprego de eu/mim, repetiu naquele momento o bordão da escola: mim não faz nada, ratificando o emprego de eu diante dos verbos no infinitivo. No entanto, no relato pessoal, ao falar das tarefas do dia de seu casamento enfatizou todas as expressões com para mim fazer, para mim vestir, para mim casar. Uma inclusão nos Questionários do ALiB, que não havia sido contemplada em nenhum dos anteriores, já publicados, são as perguntas sobre metalingüística (Comitê Nacional do ALiB, p. 46), sobre a consciência lingüística do informante sobre a sua fala, sobre a fala dos demais de sua comunidade, de outras comunidades e sobre a dos mais idosos ou pioneiros na localidade.

 

5. As diversas versões dos Questionários

 

O Comitê Nacional não hesitou em aplicar dezenas de vezes cada versão dos Questionários e de discutir cada uma delas com os seus membros e com os demais pesquisadores presentes aos encontros regionais e nacionais. Resultaram, então, as versões de 1998 e 2001, publicadas pela Editora da UEL e colocadas à disposição de pesquisadores de outras IES que as utilizaram, e as utilizam ainda, na elaboração de Atlas estaduais, como é o caso do Atlas Lingüístico do Mato Grosso do Sul e do Atlas Geossociolingüístico do Pará, além de terem sido adotadas, com adaptações, para dissertações e teses sobre geolingüística local ou regional, em programas de pós-graduação da UEL, da USP, da UFAL e da UFMS, entre outros. Uma outra edição, a de 2000, resultado da análise de aplicações experimentais anteriores e das reformulações propostas, teve uma tiragem bastante restrita, 100 exemplares, distribuída entre os participantes do 2º Workshop de preparação de pesquisadores de campo do ALiB, realizado na UEL, com a finalidade de testagem pelos inquiridores presentes para preparar a versão final com a aprovação dos pesquisadores procedentes das várias regiões do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo.

 

6. Considerações finais

Embora o Comitê Nacional tenha sido rigoroso não só na seleção dos fatos fonético-fonológicos a serem investigados, dos itens lexicais que poderiam suscitar variantes regionais ou sociais e de fatos morfossintáticos já registrados na língua falada no Brasil, mas também na formulação das questões e nas reformulações propostas pelos pesquisadores envolvidos, o instrumento exige do entrevistador uma capacidade de adaptação à situação e às características do informante. Apesar da grande extensão territorial, das diferenças regionais e sociais do Brasil e das semelhanças e diferenças lingüísticas que o ALiB pretende cartografar, descrever e discutir, poucas são as lacunas que o instrumento oferece e que não possam ser sanadas pelo entrevistador.

Vale ressaltar que, ao lado de um instrumento de coleta de dados bem elaborado, não se pode descuidar da preparação dos investigadores de campo, bem como do estudo de trabalhos dialetológicos e geolingüísticos que já assinalaram diferenças dialetais, diastráticas e diacrônicas brasileiras, registradas na linguagem oral de falantes nativos.

 

RESUMO

Discute-se neste trabalho a elaboração dos Questionários que servirão como instrumento de coleta de dados para o Projeto do Atlas Lingüístico do Brasil (ALiB), ressaltando as fases da construção e das aplicações experimentais em todas as regiões brasileiras.

 

PALAVRAS-CHAVES: questionários, Atlas Lingüístico do Brasil, construção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas Lingüístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial, 1994.

BRANDÃO, Sílvia Figueiredo & MORAES, João Antônio de. A geolingüística no Brasil: resultados e perspectivas. IN Atas do IX Congresso Internacional da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina (ALFAL). Campinas: UNICAMP/IEEL, 1998, v. IV.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Atlas Lingüístico do Brasil: questionários. Londrina: Ed. UEL, 1998.

_____. Atlas Lingüístico do Brasil: questionários. Londrina: Ed. UEL, 2000.

_____. Atlas Lingüístico do Brasil: questionários. Londrina: Ed. UEL, 2001.

NASCENTES, Antenor. Bases para a elaboração do Atlas Lingüístico do Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958 e 1961, 2 v.

PONTES, Ismael e AGUILERA, Vanderci de Andrade. Questionário geolingüístico: uma proposta de reorientação metodológica. XXVIII Estudos da Linguagem, p. 238-244, Bauru: Universidade do Sagrado Coração.

RECTOR, Mônica (org.). Questionário básico de trabalho de campo lingüístico: revisão crítica do Questionário do Atlas Lingüístico de Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.

SILVA NETO, Serafim da. Guia para estudos dialectológicos. Belém: CNPq / Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 2. ed.; 1957.



[1] Projeto do ALiB: 1998, p. 5.