A EMERGÊNCIA E PROJEÇÃO DA IDENTIDADE RELIGIOSA EM ENTREVISTAS E CONVERSAÇÕES ESPONTÂNEAS
(THE EMERGENCE AND PROJETION OF RELIGIOUS IDENTITIES IN INTERVIEWS AND SPONTANEOUS CONVERSATIONS)

 

Jorge França de FARIAS JÚNIOR (Universidade Estadual de Campinas / PG -UNICAMP)

 

 

ABSTRACT: This research investigates the emergence of religious identities in speech, specifically, in interviews and spontaneous conversations, and presents a comparative analysis of the linguistic devices used in the construction, maintenance and projection of religious identities in these text genres.

 

KEYWORDS: religious identities; spontaneous conversations; interviews. 

 

 0. Introdução

 

A princípio se faz necessário no estudo da identidade de modo geral levarmos em consideração alguns pressupostos de ordem ideológica, assim como valores e crenças que irão contribuir de forma significativa na construção de uma identidade social.

Isto pode ser constatado mais especificamente quando passamos a estudar a identidade religiosa, haja vista que, diante de uma postura religiosa o indivíduo manifesta de forma convicta suas ideologias e opiniões pessoais, porém, sem deixar de projetar esta postura a partir do grupo a que pertence. Assim, recorremos a Ochs (1993:288), para quem a identidade se constrói e se manifesta dentro de uma perspectiva social da qual fazemos parte integrante, agindo e interagindo. Também Van Leeuwen (1997:180) afirma que os atores sociais deixam de forma clara sua intenção, que pode ser includente ou excludente dependendo da identidade que o indivíduo queira mostrar ao seu interlocutor.

Assim, nas análises a serem desenvolvidas a seguir, verificamos que os atores sociais criam uma relação de alteridade: ou manifestam suas opiniões e ideologia religiosa com o objetivo de construir uma identificação com seu grupo social (auto-identificação) ou quando manifestam suas opiniões e ideologia no sentido de se diferenciarem dos demais grupos religiosos (hetero-identificação).           

 

1. Perspectiva teórica

 

A análise da emergência e projeção da identidade religiosa de atores sociais (leigos e profissionais), nos gêneros textuais “entrevista” e “conversação espontânea”, representantes da modalidade falada, foi feita a partir de um levantamento teórico pautado em Ochs (1993), Van Leeuwen (1997), Penna (1992 e 1997), e Hoffnagel (1998 e 1999).

Ao estudar o fenômeno da identidade, é necessário enfatizar que entendemos identidade no sentido mais específico de identidade social. De acordo com Ochs (1993:288), "identidade social envolve uma grande gama de personae sociais que pode ser reclamada ou atribuída no curso da vida, tais como sua posição social, postura, relacionamentos etc". A partir disto, um mesmo indivíduo pode manifestar múltiplas identidades sociais, assim como ser homem/mulher, espírita/evangélico etc.

Vale enfatizar que para Ochs (1993:288), o falante pode valer-se da linguagem não só para tentar construir a sua identidade como também a identidade social de seu interlocutor, isto acontece freqüentemente quando está em jogo a construção da identidade religiosa. Logo, devemos observar que a maneira como projetamos nossa identidade pode dar evidências de como queremos ser vistos pelo nosso interlocutor; isto estaria interligado ao conceito de alteridade, pelo fato de que quando identificamos o outro, de certa maneira estamos nos identificando no sentido de diferenciarmo-nos dele.

Numa mesma perspectiva, Van Leeuwen (1997:180) afirma que a realização de representação dos atores sociais num discurso deixa claras as intenções do ator e “podem ser includentes ou excludentes para servir aos interesses e propósitos em relação aos leitores a quem se dirigem”. Portanto, os falantes tentam estabelecer suas identidades sociais agindo e interagindo, e isso pode acontecer de duas formas: (i) de uma forma ativa, onde há uma sobreposição da identidade de um ator social sobre o outro, ou (ii) de uma forma passiva, quando este outro submete-se a esta sobreposição. Tais papéis de representação são expressos para Ochs (1993:288) em termos de stances (posturas), através das quais, os falantes tentam estabelecer suas identidades sociais por meio do desempenho de atos sociais específicos. Para a autora, stance seria uma manifestação de um ponto de vista reconhecido socialmente. Stance engloba a expressão de atitudes epistêmicas, tais como certezas e incertezas que um falante tem sobre suas proposições e de atitudes afetivas, tais como a intensidade emocional ou o tipo de emoção expressa diante de uma dada situação.

Para a composição do corpus, coletamos conversações espontâneas entre membros de uma mesma denominação religiosa e entrevistas feitas diretamente com membros de diferentes ideologias religiosas, tais como Catolicismo, Protestantismo e, Espiritismo Kardecista. Nestas entrevistas foram abordados temas do cotidiano e temas polêmicos como a violência, a pena de morte, o aborto, a vida após a morte e a ciência. Os gêneros trabalhados (entrevista e conversação espontânea) foram escolhidos por mostrarem de uma maneira mais direta a projeção dos atores sociais religiosos e como suas identidades emergem.

                Assim, analisamos aqui um trecho de uma entrevista feita ao um frei católico. Vejamos como ele deixa emergir sua identidade religiosa ao se posicionar quando questionado sobre o que pensava com relação ao aborto. 

 

EX1. "... em hipótese alguma/ porque o aborto pra mim é crime/ é assassinato né? Nós cristãos em momento algum podemos ser a favor do aborto/ o aborto é uma violação tremenda aos direitos humanos/ que todo mundo tem o direito de ver a luz do sol / eu acho que a igreja / as discussões religiosas deveriam pensar mais com relação aos meios para evitar a gravidez (0.5) evitar a gravidez pra mim não é nada grave /não é pecado...".

 

                O entrevistado não se limita a dar uma resposta objetiva à pergunta, e logo de imediato justifica sua posição contrária ao aborto ao enfatizar que todo cristão não pode em momento algum ser a favor: "nós cristãos em momento algum podemos ser a favor do aborto...". Assim, observamos que sua identidade religiosa emerge ao reafirmar um dogma do catolicismo, em que verificamos o uso da stance de ordem epistêmica. Ao mesmo tempo em que ele se auto-identifica com o seu grupo social, quando enuncia o trecho acima aspeado, ele se diferencia do seu próprio grupo social, quando deixa aparecer sua própria opinião, de que se deveria repensar a questão da prevenção à gravidez, contrapondo-se a um dogma do Catolicismo. Este depoimento mostra que o indivíduo constrói sua identidade num movimento que privilegia a alteridade de posições. Segundo Van Leeuwen (1997), esse ator social representa-se com uma intenção includente, porém, de uma maneira ativa, pelo fato de não se submeter a este princípio da igreja.                

                O segundo exemplo, é um fragmento extraído de uma entrevista feita com um palestrante de um centro espírita kardecista. Vejamos como este entrevistado projeta sua identidade religiosa ao ser abordado sobre o tema pena de morte e sobre o tema vida após a morte.

 

EX2. "...ele vai se aproveitar de elementos encarnados aqui na terra/ pessoas que têm a mesma tendência para influenciá-la à prática do mal/ é justamente o demônio que fala por exemplo o católico e o protestante (...) naturalmente o catolicismo e o protestantismo dizem que a gente ressuscita mas como é que você pode admitir que um corpo que já foi destruído / naturalmente né/pela natureza ele pode ressuscitar num/ é muito mais lógico de se dizer que o espírito volta ocupando um outro corpo num é? / é feito num processo natural de uma gravidez (0.5) num é mesmo?..."

 

                A princípio, observamos que o entrevistado faz uso de recursos lingüísticos que permitem por assim dizer, que venha à tona sua identidade religiosa. É o caso do uso do termo "encarnados", que indica uma determinada visão de mundo, uma determinada posição enunciativa. Portanto, percebemos que ele mostra a forma como quer ser visto pelo seu interlocutor. Também pôde ser constatado em dois momentos de sua fala, que este ator social mostra diretamente indícios de hetero-identicação com o católico e com o protestante, num sentido de se diferenciar desses grupos religiosos. Logo, temos um exemplo em que o indivíduo apresenta uma intenção excludente e de ativação, pois ele se posiciona comparativamente mostrando que é muito mais lógico o seu ponto de vista de religioso do que o dos outros.

                Num terceiro exemplo, analisamos uma conversação espontânea entre dois protestantes (L1) e (L2) sobre um terceiro indivíduo que era católico e se converte ao protestantismo.

 

EX3.L1 - "... aí eu não dispensei essa oportunidade eu disse tá veno Cristo/isso é Deus que tá falano com você... e ele se converteu e eu tenho (2.0) certeza como ele partiu salvo...".

L2 - "...outra coisa quando a/ uma missa lá no hospital de primeiro ele (2.0) vai a missa tudinho quando começou a missa titia / ele tava acordado / ele fechou os olhos / o padre passando e ele não recebeu a hóstia porque? Porque ele tava veno que ali já tava errado ele viu ali/ já tava errado ele no:::um quis mais...".                     

 

                A priori, observamos que a identidade de protestante emerge quando L1 diz que não dispensou a oportunidade de mostrar sua identidade religiosa no intuito de ganhar um adepto para sua religião. Em outras palavras, podemos verificar no exemplo acima que a identidade religiosa protestante é basicamente construída pela função de pregador assumida por L1. Neste sentido, L1 se utiliza da estratégia de auto-identificação para construir seu discurso. Logo, temos a representação de um ator social de posição excludente ocorrendo dois processos de atuação: primeiro, o de ativação por parte de L1, que sobrepõe sua opinião sobre o seu interlocutor; segundo, o de passivação por parte do indivíduo que se converte à ideologia de L1. Também verificamos a stance epistêmica quando L1 refere-se à certeza de que ele partiu salvo. Por último, observamos uma posição de hetero-identificação de L2 ao relatar a rejeição do indivíduo do qual estavam falando em relação ao ritual do Catolicismo: "... porque ele tava veno que ali já tava errado...".                       

 

Resultados Finais

 

Com relação à questão da alteridade estudada aqui, chegamos à conclusão que não há possibilidade de lidar com o termo identidade sem levarmos em consideração este primeiro termo. E por serem intrínsecos tais conceitos, verificamos que os atores sociais pertencentes a um grupo, ao estabelecerem suas identidades dentro do seu próprio grupo, as deixam emergir para criar uma relação de proximidade de seu grupo religioso e diferenciar-se dos demais. Ou seja, os resultados mostraram de um modo geral, que tanto nas entrevistas quanto nas conversações espontâneas, os atores sociais, em sua maioria, estabelecem suas relações de alteridade a partir da hetero-identificação, pois, na medida que se auto-identificam com o seu grupo, também estão se hetero-identificando com os membros que compõem o grupo do qual fazem parte. 

No entanto, a pertinência da stance epistêmica foi verificada em maior grau nas entrevistas, já que os falantes, enquanto construtores do discurso, tecem suas idéias de forma mais concisa, e consciente de suas próprias stances.  Porém, nas conversações espontâneas, por haver um contato mais intencional de se sobrepor sobre o seu interlocutor, e conseqüentemente por saber que seu discurso não está sendo analisado no sentido de uma emergência dessa identidade, o indivíduo permite, por assim dizer, uma abertura maior para uma projeção de stances afetivas.

 

RESUMO: Esta pesquisa investiga a emergência da identidade religiosa no discurso falado, especialmente, em entrevistas e conversações espontâneas, e apresenta uma análise comparativa dos mecanismos lingüísticos utilizados na construção, manutenção e projeção da identidade religiosa nesses gêneros textuais.  

 

PALAVRAS-CHAVE: identidade religiosa; conversações espontâneas; entrevistas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

HOFFNAGEL, J.C. (1998). A emergência de identidades na atividade discursiva

     falada e escrita.  In Fala e Escrita: Características e Usos III. Projeto Integrado

     apresentado ao CNPq/PIBIC, Recife (mimeo).

_____. (1999). Linguagem e a construção da identidade de gênero. In

     Kazue Saito Monteiro de Barros(org.). Produção Textual: interação,

     processamento e variação. Natal, EDUFRN, pp.81-92. 

OCHS, E. (1993).  Constructing social identity: a language socialization perspective.

     Research on Language and Social Interaction  26(3): 287-306.

PENNA, M. L. F. (1992). O que faz ser nordestino: identidades sociais, interesses e

     o “escândalo” Erundina.  São Paulo. Cortez.

PENNA, M. L. F. (1997). Identidade Social, linguagem e discurso. Recife, UFPE.

     Tese de doutorado.

VAN LEEUWEN, T. (1997).  A representação dos actores sociais. Canunho, pp. 169

     -222.