ANÁLISE ACÚSTICA DAS VIBRANTES NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
(ACOUSTIC ANALYSIS OF THE BRAZILIAN PORTUGUESE TRILLS)
Kelly Cristiane Henschel Pobbe de CARVALHO (Universidade Estadual Paulista - Assis)
ABSTRACT: This paper consists in
an acoustic analysis of the consonants /r/ and /R/, in several phonic contexts. The analysis was based on a portuguese
specific variety and was made with the windows program forspeech analysis,
called Multi-Speech.
KEYWORDS: Phonetics; acoustic analysis; trills.
0. Introdução
Justifica-se, aqui, o interesse pelo estudo das chamadas vibrantes, pelo fato de haver, no português brasileiro, uma grande variedade de realizações desses fonemas, segundo as diferentes regiões do nosso país. Há, pois, a necessidade de estudos específicos para a caracterização dialetal dessas inúmeras variedades. Outro aspecto que também é importante destacar é o fato de que a realização dessas consoantes, na maior parte das variedades atuais do português falado no Brasil, atualmente, ao que nos parece, já não é propriamente vibrante (Hoyos-Andrade, 2001).
1. Revisão bibliográfica
Do ponto de vista fonológico, o que se afirma tradicionalmente sobre as vibrantes do português brasileiro é que há duas espécies que se opõem apenas em posição intervocálica: o erre fraco (caro, fora) e o erre forte (carro, forra), embora ocorram em muitos outros contextos: a) inicial (rico); final de sílaba no meio de palavras (corta, gorda); c) final de palavra (falar); d) em grupos consonânticos (prato, trilhar). Como a oposição fonológica só se dá em posição intervocálica, nos demais ambientes, a oposição é neutralizada: em posição inicial só ocorre o erre forte / múltiplo (rato), em grupos consonânticos ocorre, normalmente, o erre fraco / simples (tribo), e em posição pós-vocálica pode ocorrer um ou outro (Callou & Leite, 1995:72-73).
Considerar, pois, a existência de dois fonemas vibrantes (o erre fraco e o erre forte) parece ser a opinião da maioria dos estudiosos da área. Mattoso Câmara, na primeira edição de sua obra Para o estudo da fonêmica portuguesa (1953), afirmava existir um único fonema vibrante. Posteriormente, preferiu rever sua posição: “Acho preferível hoje, portanto, aceitar a idiossincrasia do consonantismo português em reconhecer duas vibrantes, que só se opõem em posição intervocálica, com neutralizção em outras posições...” (Mattoso Câmara Jr., 1977:79).
Cristófaro-Silva (1999:160) também considera, numa interpretação fonêmica, a existência de duas vibrantes: “Em todos os dialetos do português haverá o contraste fonêmico em posição intervocálica entre o ‘r fraco’ e o ‘R forte’ (...) Este contraste fonêmico pode manifestar-se pelo número de vibrações da língua na articulação do segmento consonantal: vibrante simples em ‘caro’ [ÈkaRU] e vibrante múltipla em ‘carro’ [ÈkaróU]”.
Há, entretanto, autores que, baseados em outros modelos fonológicos, defendem a idéia de que o português possui apenas um fonema vibrante. Dentre esses autores encontram-se Lopez (1979) e Monaretto (1992, 1997). Com uma visão gerativa, Lopez (1979:56-64, apud Monaretto et alii, 1999:209) crê na hipótese da existência de um só fonema vibrante na estrutura subjacente, mas, ao contrário de Mattoso Câmara Jr. (1953), considera-o como uma vibrante simples. Monaretto, apoiando-se nos princípios da Fonologia Autossegmental e levando em conta dados da fala do sul do país, considera também a existência de um só fonema, a vibrante branda (Monaretto et alii, 1999:210).
Do ponto de vista fonético, as chamadas vibrantes apresentam um grande número de realizações que dependem não apenas do contexto lingüístico em que se encontram, mas também dos diferentes dialetos. Para o dialeto do Rio de Janeiro, há, pois, os trabalhos de Mattoso Câmara Jr. (1953), Votre (1978), Callou (1987), dentre outros. Para esse dialeto, temos que: “O chamado r fraco realiza-se quase sempre como uma vibrante apical simples, um tepe alveolar sonoro, embora possa apresentar uma realização retroflexa – como o seu correspondente forte – que caracteriza o chamado dialeto caipira. O r forte varia mais amplamente na sua realização e apresenta no falar culto carioca (...) as seguintes variantes: 1) vibrante múltipla anterior ápico-alveolar sonora, 2) vibrante múltipla posterior-uvular, 3) fricativa velar surda, e 4) fricativa laríngea ou glotal (aspiração) surda. No final de palavra pode ainda reduzir-se a zero fonético ou realizar-se como vibrante simples quando a palavra seguinte começa por vogal.” (Callou & Leite, 1995:73).
Massini-Cagliari & Cagliari (2001:126) apontam as possíveis realizações para o erre: fricativa velar surda e sonora [x, Ä], fricativa uvular surda e sonora [X, Ò], glotal surda e sonora [h, ú], vibrante alveolar surda e sonora [r6, r], vibrante uvular sonora [R]; tepe alveodental [R]; e retroflexas anterior/alveolar [¨] e posterior palatoalveolar [Ó].
Como se pode observar, através das múltiplas realizações fonéticas do erre forte, a tendência é de a vibrante sofrer um processo diacrônico de passagem de articulação anterior para posterior (Mattoso Câmara Jr., 1984, apud Monaretto et alii, 1999:205-206). Callou & Leite (1995) acrescentam ainda à mudança do ponto de articulação, de anterior para posterior, a mudança de modo de articulação, de vibrante para fricativa. Cagliari (1981, apud Monaretto et alii, 1999, p.206) também aponta, em sua tese, que no dialeto paulista e do sul do país, a vibrante alveolar aparece, mas está sendo substituída pela fricativa velar, no contexto intervocálico ou pré-vocálico.
Para Lopez (1979, apud Monaretto et alii, p.206), o fato de o fonema /r/ realizar-se, em posição final de sílaba, como uma fricativa velar, no português carioca, exemplifica um caso de telescopia, em que estágios intermediários de uma derivação fonológica são perdidos em favor de formas extremas. Para o /r/, então, teríamos registrado as seguintes pronúncias: tepe apical > vibrante apical > vibrante uvular > fricativa uvular > velar aspirada. No caso do Rio de Janeiro, foram preservadas as duas formas extremas: o tepe apical e a velar aspirada. Essa mudança tem sido observada também por Marquardt (1977) e Monaretto (1992), para o dialeto do Rio Grande do Sul.
Em Fonética Acústica, as vibrantes são chamadas de líquidas, nome genérico que engloba também as laterais (/l/ e /´/. Esse agrupamento se deve à existência, nessas consoantes, de certas características que lhes dão uma fisionomia intermediária entre os sons vocálicos e consonânticos; acusticamente possuem traços vocálicos e consonânticos. A estrutura formântica das líquidas é muito semelhante a das vogais; só difere dessas nos seguintes aspectos: a freqüência do tom fundamental é menor nas líquidas; sua intensidade global também é menor (Quilis, 1981:274).
2. Análise acústica das realizações do erre fraco e do erre forte
Para a realização da análise acústica do erre fraco, consideramos os seguintes contextos fônicos:
a) posição intervocálica (na mesma palavra): siri, fará, canguru, adorava, Maria. Em todos os exemplos, a duração dessa consoante é bastante breve (em média 25 a 30 ms.). Nos espectrogramas, manifestam-se pela presença de um único intervalo de silêncio, seguido ou não de uma barra vertical (interrupção ou descontinuidade na onda sonora); e acompanhado ou não de vibrações das cordas vocais; trata-se de um tepe [R] ou toque da ponta da língua contra os alvéolos. Os formantes assemelham-se aos das vogais adjacentes, embora sejam menos marcados, o que revela sua menor intensidade.
b) posição intervocálica (palavras diferentes): apreciar os bichos; ir à praia; ver os surfistas; fazer uma viagem. Das quatro ocorrências observadas, temos que: em duas delas, o informante pronunciou o erre como [R], ou seja, como um tepe alveolar, semelhante ao do contexto intervocálico na mesma palavra. O espectrograma revela, pois, uma interrupção bastante breve (21 e 30 ms. de duração). Nas outras duas ocorrências, o informante pronunciou o erre como [¨], ou seja, como uma constritiva retroflexa, não precedida de pausa. Para estes exemplos, observamos, através dos espectrogramas, que o aspecto geral do segmento é, no início, de uma vogal que se transforma, gradativamente, em uma constritiva. A duração desses segmentos é maior (54 e 87 ms.).
c) em grupos consonânticos: frutas, cravo, trufas, frevo, apreciar, outra, praia, praticando. Em todos os exemplos a configuração dos espectrogramas é bastante semelhante a do erre em contexto intervocálico: apresenta-se como uma breve “interrupção” ou período de silêncio no continuum sonoro. É possível observar, entretanto, que, nesse contexto, o erre fraco é precedido de um segmento vocálico muito breve – a vogal epentética. Esse segmento apresenta-se, nos espectrogramas, com uma estrutura acústica muito semelhante a de uma vogal; seus formantes encontram-se na mesma situação dos da vogal do núcleo silábico. A duração, pois, do erre em grupos consonânticos é maior, em média 55 ms.
d) em final de sílaba interna: diversão, surfistas, surfe, verde. Nesse contexto, o erre é pronunciado, em todos os exemplos, como uma retroflexa [¨], o chamado “erre caipira”. Sua duração é maior que a do erre intervocálico, em média 90 ms. Como já observamos anteriormente, a configuração do espectrograma e dos formantes do segmento em questão, nesse contexto, é, no início, de uma vogal que se transforma, gradativamente, em uma constritiva, sonora ou ensurdecida.
e) em final de palavra seguida de consoante oclusiva/fricativa: dançar frevo, comer frutas, plantar também. Nessas ocorrências o erre também foi pronunciado como uma retroflexa, pois facilmente reconhecemos nos espectrogramas e formantes seu aspecto vocálico-constritivo. Aqui, entretanto, a tendência parece ser a de ensurdecimento da consoante no momento da constrição, pois em todos os nossos exemplos o erre é seguido de consoante surda. Sua duração também é maior, a média é de 92 ms.
f) em final absoluto: viajar, derreter, flor, horror. Encontramos para todos os exemplos a ocorrência da retroflexa, que se revela também, nos espectrogramas e formantes, pelo seu aspecto vocálico-constritivo. O ensurdecimento final da consoante aqui também é bem característico. A duração, no entanto, é maior, talvez por se tratar de final de enunciado, em média 110 ms.
Para a realização da análise acústica do erre forte, consideramos os seguintes contextos fônicos:
a) posição inicial absoluta: ricos, rude. O aspecto geral do espectrograma, para os dois exemplos de erre forte, nessa posição, é de uma consoante constritiva surda. Seus formantes parecem acompanhar os da vogal do núcleo silábico. Sua duração é de aproximadamente 90 ms.
b) posição intervocálica: derreter, horror, e resolveu, traje rasgado. Nesse contexto, o erre forte também se apresenta nos espectrogramas como uma constritiva. Entre vogais, entretanto, este segmento oscila entre realizações sonoras e ensurdecidas. Sua duração é, em média, 95 ms.
Como ilustração, apresentamos, a seguir, duas análises espectrográficas utilizadas para este breve estudo, nas quais figuram, respectivamente, o tepe alveolar intervocálico, a retroflexa em final absoluto (adorava flor - figura 1), o erre constritivo intervocálico e, novamente, a retroflexa em final absoluto (foi um horror - figura 2).
figura 1
figura 2
3. Conclusões
Neste breve estudo, encontramos, para a variedade de português analisada, as seguintes realizações do erre fraco: o alofone [R], entre vogais e grupos consonânticos, que apresenta-se nos espectrogramas como uma interrupção sonora bastante breve, semelhante às oclusivas; trata-se do tepe, ou como sugere Hoyos-Andrade (2001), um toque apicoalveolar sonoro; não corresponde, propiamente a uma vibração, que supõe pelo menos dois toques sucessivos; e o alofone [¨], que aparece em final de sílaba ou de palavra; seu aspecto, nos espectrogramas, é de uma vogal que se “transforma”, gradativamente em uma constritiva, acompanhada ou não de vibrações das cordas vocais, segundo o contexto. E, para o erre forte, encontramos as seguintes realizações: uma constritiva posterior, ao que nos parece, uvular, e não propriamente velar, em posição inicial absoluta (nesse contexto, normalmente, é surda) e entre vogais (nesse contexto, normalmente, é sonora); sugerimos a transcrição [X, Ò].
PALAVRAS-CHAVE: Fonética; análise acústica; vibrantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALLOU, Dinah, LEITE, Yonne. Iniciação à fonética e à fonologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Para o estudo da fonêmica portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1977.
CRISTÓFARO-SILVA, Thaïs. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 1999.
HOYOS-ANDRADE, Rafael Eugenio. Las vibrantes en el portugués brasileño: caracterización fonético-fonológica. La Linguistique, Paris (no prelo).
MASSINI-CAGLIARI, Gladis, CAGLIARI, Luiz Carlos. Fonética. In: MUSSALIM, Fernanda, BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. v.1. São Paulo: Cortez, 2001.
MONARETTO, Valéria N. O., QUEDNAU, Laura Rosane, HORA, Dermeval da. As consoantes do português. In: BISOL, Leda (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
QUILIS, Antonio. Fonética acústica de la lengua española. Madrid: Gredos, 1981.