Domínios prosódicos e processos de reestruturação silábica

(PROSODIC DOMAINS AND RESYLLABIFICATION PROCESSES)

 

 

Luciani TENANI (UNESP/SJRP)

 

 

ABSTRACT: This paper analyses the prosodic domains of two ressyllabification processes in Brazilian Portuguese: fricative voicing (as in ‘arroz amarelo’) and tapping (as in ‘açúcar amarelo’). The data show that: (i) there is not a prosodic boundary that blocks these processes; (ii) there is a tendency to favour the CV syllables.

 

KEYWORDS: syllable, prosodic domains; phonology; Brazilian Portuguese.

 

 

 

Dentre os processos de sândi externo que ocorrem no Português Brasileiro, doravante PB, circunscrevemos nossa atenção aos processos de vozeamento da fricativa diante de vogal, como exemplificado em (1.1), e de tapping, como em (1.2), com o objetivo de encontrar evidências da relevância de domínios prosódicos em PB acima da palavra.

 

 

(1)           1. arroz amarelo                                 2. açúcar amarelo

 

 

O primeiro é um processo de assimilação conhecido na literatura como ‘vozeamento da fricativa’. Ocorre na variedade do PB falada no estado de São Paulo, conforme os contextos exemplificados em (2). Nessa variedade aqui estudada, a fricativa surda que ocupa a posição de coda assimila o traço [voz], isto é, vozeado, do elemento seguinte, seja esse elemento uma vogal, como em (2.1), ou uma consoante sonora, como em (2.2) e (2.3). Satisfeito o contexto segmental, o processo se aplica quer dentro da mesma palavra, como em (2.3), quer entre palavras, como em (2.1) e (2.2).

 

 

(2)           1. arro[za]marelo                  2. arro[z]bonito                    3. me[z]mo 

 

 

O outro processo que envolve a reestruturação silábica semelhante ao vozeamento da fricativa ocorre com a vibrante em posição de coda seguida de uma palavra iniciada por vogal. No dialeto considerado, ocorre um segmento retroflexo posterior [Ó], e, eventualmente, um retroflexo anterior [¨][1] na coda, quer em final de palavra como em (3.1), quer em meio de palavra como em (3.2). Em contextos de sândi, como em (4), esses segmentos passam a tepe [R]. Como não encontramos uma denominação específica na literatura brasileira, batizamos esse processo por tapping (por semelhança ao que é nomeado por flapping para o Inglês).

 

 

(3)           1. mar                     [maÓ]                   2. aberto                [abEÓtU]

(4)           1. mar aberto         [maRabEÓtU]              2. mar alto             [maRaUtU]

 

 

                Nas duas regras de sândi apresentadas, ocorre uma ressilabificação de maneira que o elemento da coda da primeira sílaba passa a ser o onset da segunda sílaba, como esquematicamente se observa em (5).

 

 

                (5) Ressilabificação

 

a) Estrutura inicial                                              b) ressilabificação

   s1                            s2                                   s                              s2

 

      O                R                    R                             O             R             O            R

 


   N          Cd          N                                             N                            N

 

      C1       V1          C2        V2                C1          V1              C2           V2

 

 

                Feita a descrição do que ocorre em termos de estrutura silábica, interessa-nos verificar a aplicação dessas regras em relação a diferentes fronteiras dos domínios mais altos da hierarquia prosódica. O bloqueio categórico do processo segmental entre fronteiras prosódicas, como por exemplo U, é tomado como indício de que a fronteira do domínio U bloqueia o processo e, portanto, o processo se aplica apenas dentro U.

                Nesse trabalho, são considerados quatro tipos de relação prosódica entre as palavras portadoras dos contextos de vozeamento da fricativa, exemplificados em (6), e de tapping, exemplificados em (7). As fronteiras prosódicas controladas são: mesmo f, entre fs, entre Is e entre Us. Para esse último contexto, foram considerados dois tipos de relação entre Us: um em que dois Us podem ser reestruturados em um único U, e outro em que as condições de reestruturação desse domínio não são satisfeitas e que, desse modo, sempre haverá uma fronteira de U. Para cada uma das cinco sentenças do corpus, foram produzidos seis enunciados[2], totalizando, para cada processo considerado, 36 contextos sujeito ao sândi (pois são seis[3] os contextos estudados). Por meio da tabela a seguir, observa-se como se dá a aplicação de cada processo em relação às fronteiras dos domínios prosódicos.

 

 

                (6)           1. [O arroz amarelo] f é mais saboroso.

2. [O arroz] f [alcançou] bom preço.

3. [O arroz,] I [apesar das perdas,] I [obteve bons resultados.]

4. [Fábio vendeu arroz.] U [Alcançou bons resultados.]

5. [O Pedro comprou arroz.] U [Alegaram falta de provas.]

 

                (7)           1. [O açúcar amarelo]f é mais saboroso.

2. [O açúcar] f [alcançou] bom preço.

3. [O açúcar,] I [apesar do especulador,] I [alcançou bom preço.]

4. [Fábio vendeu açúcar.] U [Alcançou bons resultados.]

5. [O Pedro comprou açúcar.] U [Alegaram falta de provas.]

 

 

Tabela 1. Vozeamento da fricativa, tapping e fronteiras prosódicas

Estrutura Prosódica

Vozeamento

Pausa

Tapping

Pausa

Mesmo f

6

 

6

 

Entre fs

6

 

6

 

Entre Is

6 – 6

 

6 – 6

 

Entre Us reestrut.

4

2

4

2

Entre Us não-reestr.

4

2

6

 

 

 

                Os resultados da tabela acima revelam que os dois processos de reestruturação silábica se aplicam entre todas as fronteiras prosódicas consideradas, desde entre fs até entre Us. Primeiramente, deve ser observado que em (8.1) e (9.1) – que corresponde à estrutura U-reestrut. – houve a reestruturação de dois Us pequenos em um U maior, conforme previsto pelo algoritmo desse domínio (cf. Nespor & Vogel, 1986: 224). Dessa maneira, nesses casos a estrutura prosódica relevante passa a ser a de frase entoacional, como indicado em (8.1) e (9.1) e atestado pela entoação em (8.2) e (9.2). Observa-se também que apenas não ocorrem os processos entre as fronteiras de I quando houver pausa e tom de fronteira (H%), como ilustrado em (8.3) e (9.3)[4].

 

 

(8)           1. [ [Fábio vendeu arroz.] I [Alcançou bons resultados.]I ]U

2.   fabiU veâIdeUaxozaUkÎâsoU bozezutadUs

                       H*          L*   LH*   H        L*  HL*  L%

3.   fabiU veâIdeUaxos / aUkÎâsoU bozezutadUs

       L*                LH*H%  L         L*   HL*  L%

 

(9)           1. [ [Fábio vendeu açúcar.] I [Alcançou bons resultados.] I]U   

2.    fabiU veâIdeUasukaRaUkÎâsoU bozezutadUs

        L*           L*  LH*           L*   L*  HL*  Li

3.  fabiU veâIdeU asukaÓ  / aUkÎâsoU bozezutadUs

      L*                 LH*H%        L          L*  HL*  L%

 

 

Considerando-se apenas os resultados para as estruturas exemplificadas acima, concluir-se-ia que o vozeamento da fricativa e o tapping têm U como o domínio de aplicação, pois a pausa delimita as fronteiras de U. No entanto, o exame da aplicação dos processos mostra que esses sempre se aplicam inclusive entre as fronteiras de Us não-reestruturáveis, quando há a adjacência prosódica, como em (10.2) – para os contextos de vozeamento – e (11.2) – para os contextos de tapping. Somente a presença da pausa,[5] juntamente com o tom de fronteira H%, impede a aplicação desses processos entre as fronteiras de U, como ilustrado em (10.3).

 

 

(10)         1. [O Pedro comprou arroz.] U [Alegaram falta de provas.]

2.   U pedRu koâpRoU¥ axoiz alegaRÎâU faUta dZI pRvas

          H*            L*   LH*       L*                H   L*     Li

3. U pedRu koâpRoU¥ axois /   alegaRÎâU faUta dZI pRvas

       H*            L*   LH* H%      L*                H   L*     L%

 

(11)         1. [O Pedro comprou açúcar.] U [Alegaram falta de provas.]

2.    U pedRU koâpRoasukaRalegaRÎâU faUta dZI pRvas      

         LH*           L* H*          L*      L*      H   L*     L%

 

 

Uma vez que o vozeamento da fricativa e o tapping se aplicam entre as fronteiras de todos os domínios prosódicos, conclui-se que esses processos não têm um domínio de aplicação. Portanto, não foram encontradas evidências de que haja uma fronteira prosódica relevante para esses processos no PB. No entanto, os dois processos têm em comum a reestruturação silábica de modo que o elemento da coda passa ao onset da sílaba seguinte. O resultado é a otimização da seqüência de sílabas CV. A relevância dessa otimização da estrutura silábica é atestada pelo fato de ela não ser bloqueada por nenhum tipo de fronteira prosódica.

 

 

 

RESUMO: Nesse artigo, analisamos os domínios prosódicos em que ocorrem o vozeamento da fricativa diante de vogal e o processo pelo qual o r-retroflexo passa a tepe. Os resultados revelam que não há uma fronteira prosódica que bloqueia esses processos, mas uma tendência à otimização das sílabas CV.

 

PALAVRAS-CHAVE: sílaba; domínios prosódicos; fonologia; Português Brasileiro.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁTICAS

 

CAGLIARI, Luiz Carlos. Fonologia do Português: análise pela geometria de traços e pela fonologia lexical. Campinas, Edição do autor, 1999.

GUIOTI, Luciana. R-retroflexo na fala de São José do Rio Preto. Comunicação apresentada no XLIX Seminário do GEL, Marília, Fundação Eurípides Soares da Rocha, 2001.

LADD, Robert. Intonational Phonology. Cambridge: CUP, 1996.

NESPOR, Marina & VOGEL, Irene. Prosodic Phonology. Dordrecht-Holland, Foris Publications, 1986.

 



[1] Segundo Cagliari (1999: 55), “a diferença fonética entre a retroflexa anterior e a posterior reside no fato de a primeira realizar-se com a ponta da língua levemente levantada (som apical), sem tocar os alvéolos dos dentes incisivos superiores, e a segunda, com a ponta da língua recurvada em direção à região articulatória palato-alveolar ou até mais posterior (em caso de ênfase)”.

[2] Foram gravadas 2 leituras de 3 informantes de mesma faixa etária (20-28anos), de sexo feminino e de nível universitário. Os dados foram digitalizados e gravados em CD.

[3] Na estrutura entre Is, são consideradas duas fronteiras de I.

[4] Para a análise da entoação, seguiu-se a proposta da Fonologia Entoacional, conforme apresenta Ladd (1996) e fez-se uso do programa PRAAT (versão 3.8).

[5] Guiotti (2001), ao realizar um estudo sociolingüístico do r-retroflexo considerando o mesmo dialeto, verificou que quando houver uma pausa, a vibrante, em posição de coda e final de palavra, sempre é um r-retroflexo. Ou seja, nunca ocorre o tepe depois da pausa nesse dialeto.