GÍRIA: A LINGUAGEM NO SISTEMA PENITENCIÁRIO

(SLANGS: THE LANGUAGE IN THE PENITENTIARY SYSTEM)

 

Maria de Lourdes Rossi REMENCHE(Universidade Estadual de Londrina)

 

 

ABSTRACT: This article aims to study the Paraná Penitentiary System language. This language closes and defends itself in a restrict condition . The slang is dealt as a group sign and this tendency is confirmed according to  thematic and formal characteristics of the words in proper form of significance and significant.

 

KEYWORDS: slang, group sign, phonetic, morphosyntactic and semantic levels.

 

 

0. Introdução

 

                A língua é um elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade, pois é um fato social, que está a serviço da vida social. É viva, flexível e evolui junto com o homem. A sociedade tem o poder de aceitar ou repelir determinadas transformações por não ser apenas um instrumento de comunicação, mas também um elemento cultural revelador da visão de mundo de cada comunidade. Preti (1987:12 ) comenta que “é através dela que a realidade se transforma em signos, pela associação de significantes sonoros a significados arbitrários”, portanto, realidades diferentes vividas por grupos sociais diferentes darão origem a formas diversas de manifestações lingüísticas.

                Preti (1987:14) afirma que “nas grandes civilizações, a língua é o suporte de uma dinâmica social, que compreende, não só as revelações diárias entre os membros de uma comunidade, como também uma atividade intelectual, que vai desde o fluxo informativo dos meios de comunicação de massa até a vida cultural, científica ou literária”.

                A língua torna-se, pois, um fator de grande importância na identificação de um povo, pelo poder de expressar a realidade da comunidade que a utiliza, englobando a cultura, comunicando-a e transmitindo-a. Assim, para um real conhecimento de um grupo humano, é necessário observar a forma pela qual este representa sua a realidade.

                A principal motivação para este trabalho foi justamente a observação da força de uma linguagem específica, a gíria, dentro do Sistema Penitenciário. Mas não o emprego de gíria comum, mas sim uma gíria de caráter criptológico, uma linguagem hermética, um signo de grupo. Este artigo objetiva estudar, sob a perspectiva teórica da sociolingüística, a língua especial dos internos do Sistema Penitenciário do Paraná, por meio de um levantamento de traços lingüísticos que permitam, num primeiro momento, a reflexão de alguns aspectos gírios e outros puramente criptológicos de grupo. A presente pesquisa se dirige a uma análise das características formais do léxico em nível de significado e significante.

 

1.        Objeto de estudo e metodologia

 

                Em um primeiro momento, procedeu-se a uma coleta de dados em nível lexical através de entrevistas feitas com internos e funcionários da Penitenciária Estadual de Londrina e da Prisão Provisória de Curitiba  que resultou um glossário básico utilizado pelos internos na comunicação inter e intragrupal[1]. Na segunda etapa, recorreu-se a uma Relação de Gírias composta de 483 termos preparada pela ESPEN (Escola Penitenciária do Paraná) para o III Curso de Formação dos Agentes Penitenciários, realizado em Londrina. A análise desses dois corpora deu origem a um novo instrumento de coleta de dados, denominado Questionário da Gíria Penitenciária (QGP) cuja aplicação visou à verificação do uso real das lexias presentes nos vários atos de comunicação.

                A análise da linguagem específica da população carcerária está relacionada à influência do ambiente físico e sócio-cultural, elementos estes suficientes para marcar a linguagem desse grupo, que a sociedade estigmatiza, fazendo com que essas comunidades minoritárias, em conflito com o meio em que vivem, hermetizem-se de maneiras diversificadas: isolamento em favelas, vestimentas características, uso de tatuagens, além da criação de uma comunidade lingüística especial, identificadora de seu grupo.

                Segundo Preti (1984:12), os membros de um determinado grupo fechado buscam na linguagem uma forma de impor diferenças entre o seu meio social e os demais meios da comunidade mais ampla, como um mecanismo de defesa, atitude própria de grupos essencialmente ligados à marginalidade, à prostituição, ao tóxico, à homossexualidade, entre outros. A tendência ao isolamento desses grupos provoca a adoção de uma linguagem especial, particularmente no plano do léxico, visto que o repertório vocabular, enquanto condição essencial da manutenção de uma comunidade, subsiste a partir de um fenômeno cíclico de aparecimento e desaparecimento de vocábulos.

                Soma-se a isso a necessidade de manter secreto o vocabulário. Além da agressão aos costumes do grupo social maior, institucionalizado, esse comportamento revela uma necessidade de auto-afirmação. A constante busca de identidade, de forma agressiva ou não, está marcada na linguagem dos internos do Sistema Penitenciário, por um léxico peculiar que constrasta com o uso da comunidade externa. Preti (1984:3) comenta, ainda, que “quanto maior for o sentimento de união que liga os membros de um pequeno grupo, tanto mais a linguagem gíria servirá como elemento identificador, diferenciando o falante na sociedade e servindo como meio ideal de comunicação, além de forma de auto-afirmação”.

 

2.        Análise dos dados

 

                A gíria não é uma linguagem independente, mas uma forma parasitária da língua comum (Cabello, 1991:19) e as maiores alterações, no caso da gíria utilizada dentro do Sistema Penitenciário do Paraná, se dará no campo semântico através do uso de metáforas. Uma das características inerentes ao vocabulário gírio é a tematização em torno dos problemas do ser humano e das preocupações em relação ao cotidiano da sociedade moderna. A linguagem dos presidiários confirma as tendências temáticas que preponderam nesse vocabulário como sexo, violência e vícios. Os elementos lingüísticos fornecidos pelo corpus conduzem aos contextos-eixo que “formam campos semânticos concretos, por meio de uma rede de constelações sinonímicas” (Cabello, 1991:46) relacionadas a tais temas.

                No campo semântico, preponderante na análise do vocabulário dos internos do Sistema Penitenciário, destaca-se o sexo numa alusão às práticas homossexuais em termos como franchão, franchone, puto, ocó, mãe, maezona, maricona, piá, menina, mona, dormir no braço, além do duquecatorze (estuprador de homem) em franca alusão ao duquetreze, ou seja, o artigo 213 do Código Penal que classifica o estuprador. Além desses vocábulos registraram-se outros que nomeiam relações sexuais tanto hétero como homossexuais: soca porva e traçar.

                Vocábulos gírios referentes à violência estão muito presentes no material que se investiga, em relação às armas de fogo temos berro, cano, draga, máquina, três-oitão, e para armas brancas bicuda, estoque, espin, lampiana, rita e chico doce. A referência ao ato de brigar se materializa em lexias como treta, enquadrar, colar o brinco, chacoalhar. Para designar polícia/guarda registram-se gambé, mango, samango, porco, pé-de-porco, pé-preto, zalibã, funça, escravo, lousa, além de grampo para algema, sapo para cadeado e vaca para cirene. Em nível semântico, a valorização dos contextos se viabilizou pela elipse do complemento verbal que se depreende como lógico num ambiente em que a violência é uma tônica caracterizadora do grupo. Por exemplo, na frase fazer alguém, no sentido de matar alguém, há uma recategorização semântica do verbo fazer que normalmente exige um objeto direto – humano, isto é, sempre vem acompanhado de coisa ou objeto: fazer uma casa, fazer compra, mas na gíria dos internos este verbo se concretiza com objeto direto + humano: fazer um cara(alguém).

O aspecto violência ainda se encontra enfatizado no corpus pela concentração de vocábulos utilizados para nomear as diversas infrações: espiantar (furtar), dar mio (fazer coisa errada), muguear e mocosar (esconder), pisar (cometer erro), cabriteiro (ladrão de carro), chorro (batedor de carteira), doze (traficante), latrô (quem mata para roubar), mula (quem carrega tóxico), pé-de-breque (falso malandro), rato de xadrez (quem rouba a cela dos colegas), cofre/transporte/blindado (quem transporta objetos no ânus) e cachangueiro (arrombador de residência).

                Apresenta-se como campo semântico típico da temática da linguagem de grupos marginalizados o conceito-eixo vícios, relacionado às drogas e ao seu consumo, por exemplo, para maconha temos a boa, bagulho, bala, balinha, coisa, cabral, mesclado, back (beck), jererê, paranga, tarugo e tijolo; para cocaína, batizada, brilho, brizola, brize, brizoleta, branca, talquinho, farinha, narizinho e poeira; já para o ato de consumir, temos dar um tapa na cara, tapa na macaca, corridinha e dezesseis (este último somente para o usuário, em alusão ao artigo 16 do Código Penal). Para cigarro comum, temos careta, crivo, botinha, giz e caiçara.

                Os processos de formação da gíria assemelham-se aos da língua portuguesa e segundo Cabello (1991:50) ao argot francês, norte-americano e castelhano, e podem ser analisados sob os planos fonético, léxico e morfossintático. Para a análise da formação do vocábulo gírio considerou-se primeiro significante e depois o significado.

                No nível morfossintático, a reformatação do significante é registrada no corpus por meio de vários processos, dentre os quais a sufixação (derivação sufixal) é o mais freqüente na gíria, sempre com intenção ora expressiva, ora afetiva, ora pejorativa. O emprego dos sufixos diminutivos ocorre com –inho(a) que se anexou a substantivos e a adjetivos, a eles acrescentando caráter afetivo, por exemplo, feinha (esposa), bichinho (jogo de bicho). Pode, no entanto, emprestar caráter pejorativo, como em porvinho (suco em pó) e joaninha (carro de polícia tipo fusca); aquele por revelar um valor negativo da bebida de baixa qualidade e este pelo descaso com a potência e modelo do veículo. Esse sufixo aparece, também, no sentido original do sufixo inho indicando objetos de pequeno porte ou dimensão, como em botinha (cigarro), balinha (porção de maconha). Caso especial dá-se com a lexia corridinha (ato de aspirar cocaína), também conhecida como carreirinha pela disposição do pó em linha reta e que pode ser consumido às pressas. Cruzam-se assim dois significados num único significante.

                É freqüente o uso da forma adjetival com base no sufixo – uda: bicuda, cascuda, peituda. Outros sufixos também estão presentes no corpus como – eta, - ante, - ão, - ndo, - eiro, - one, - osa, entre outros: bumbeta, careta, carreta, pisante, batatão, cascão, jurão, corujando, cabriteiro, franchone, cabulosa, mancoso.

                Pode-se observar uma predileção desse tipo de gíria por construções com palavras-eixo, que formam expressões paralelas. Elegemos, no corpus, o verbo estar: estar de cara limpa, estar chupando bala, estar branco, estar de prego, estar no bico, estar embaçado, estar ligado na fita, estar limpo, estar dando um pião.

O processo de composição vocabular também é responsável pela formação do léxico gírio. No corpus, destacamos: areia do mar (sal), manjatempo (quem cuida da vida do outro), sangue-bom (pessoa boa), boca-de-ferro (cano sem chuveiro), come-quieto (lençol), pega-louco (calça de agasalho), couro-de-rato (dinheiro), bota-fora (advogado), capa-preta (juiz), treme-treme (motel), entre outros. Cunha e Cintra (1985) (apud Carvalho, 1987:38) comentam que a palavra composta representa sempre uma idéia única e autônoma, muitas vezes dissociada das noções expressas pelos seus componentes.

Os termos gírios são criados de acordo com a vontade do falante, muitas vezes invencionices que não obedecem a normas gramaticais. Em se tratando de gênero, por exemplo, a gramática postula que o feminino de cavalo é o termo égua, no entanto, no  corpus, figura a forma cavala para o feminino ocorrendo uma extensão de sentido, pois cavalo é um animal grande, bonito e elegante, daí fazer-se o feminino cavala para mulher bonita e grande, constituindo um elogio.

A deformação dos significantes, através das alterações fonéticas, está presente na supressão dos fonemas finais, ou seja, apócope, como em jaca (jaqueta), doca (documento), croco (crocodilo/traidor), but (sapato) que funcionaria como uma forma apocopada de botina, ou ainda, por aproximação fonética com boot (bota em inglês). Em vocábulos como adevo (advogado) identificamos além da apócope, também a suarabácti pela inserção da vogal e para desfazer o encontro consonantal; em latrô também teremos a apócope acompanhada de um hiperbibasmo por sístole, mudando a palavra paroxítona em oxítona.

A derivação imprópria constitui um dado lingüístico importante na formação lexical do significante. Numa primeira instância, nota-se a transposição da classe de palavras adjetivo para  substantivo como em bicuda (faca), bobo (relógio/coração), zóiuda (televisão); além de substantivos próprios para comuns como em rita (colher afiada) e tereza /dr ª tereza (corda feita de lençol) e marrocos(pão).

Merece destaque a incidência de empréstimos internos que, para Câmara Júnior (1977:105), ocorrem quando traços característicos de um falar ou de um dialeto passam a outro falar ou dialeto ou se integram na língua comum. Nos dados lingüísticos deste trabalho encontram-se empréstimos internos e oriundos do vocabulário técnico do Código Penal em que o número dos artigos das infrações cometidas nomeia os indivíduos como doze (traficante), dezesseis (viciado), duquetreze (estuprador). A presença desses vocábulos se explica pela importância do Código Penal na vida dessas pessoas. Essa apropriação da linguagem técnica do Direito Penal tem sido aproveitada com muita freqüência em programas humorísticos de rádio e televisão em que um marginal pobre e analfabeto, pela reincidência, é capaz de citar de cor e com propriedade o número do artigo em que ele está ou estaria enquadrado.

Encontramos, ainda, termos provenientes do jogo-de-bicho, muito popular nas cadeias, utilizados para quantificar as somas monetárias como: cachorro(R$ 5,00) galo (R$50,00), vaca (R$100,00), milha (R$1000,00).

No tocante à formação do léxico gírio a partir do significado, podem-se salientar ocorrências de alteração de significados usuais de vocábulos por meio de processos metafóricos e metonímicos.

De acordo com Cassirer (1972:104), a metáfora consiste “no sentido de que seu domínio abrange tão somente a substituição consciente da denotação por um conteúdo de representação, mediante o nome de outro conteúdo, que se assemelha ao primeiro em algum traço, ou tenha com ele qualquer analogia indireta”.

Segundo Coseriu (apud Filipak 1983:50), “a linguagem é essencialmente cognoscitiva” devendo se adaptar aos fatores evolutivos de uma cultura, logo “a substituição de uma cultura por outra, contínuo progresso cultural, e o surgimento de idéias novas no horizonte da consciência lingüística” acabam exigindo do falante a criação e o emprego de novas metáforas para denominar as coisas. Essa substituição se dá, muitas vezes, porque o sistema exige a substituição de signos que se tornaram inexpressivos, ou para a criação de novos signos então. Observamos, assim, que a metáfora representa a necessidade constante e crescente do homem expressar o que vai na sua alma, seus sentimentos e experiências, pois ela é essencialmente o descobrimento de novos sentidos, sua fixação e determinação por meio de nomes já conhecidos. Na gíria do Sistema Penitenciário encontramos metáforas como areia (açúcar), botinha (cigarro com filtro), corneta (canudo para aspirar cocaína), giz (cigarro), dragão (isqueiro), falante (rádio), pavão (televisão), papagaio (rádio), (colher), agá (fingir algo), entre muitas outras.

Os eufemismos constituem um recurso metafórico, fundamentado num processo psico-associativo de uma área particular que não visa a motivar, mas a impedir motivações de associações, interditas pelo tabu ou pelo decoro. Através desse processo eufêmico, os presidiários apelam para a mudança de sentido e evitam nomear o ato fisiológico de defecar, utilizando perífrases como fazer um barroso, barro, visitar o ari barroso, ou o mais moderno passar uma fax. A mulher também é vítima das interdições do tabu, da decência e do sexo, o órgão sexual feminino é objeto de gracejo e dos dismefismos quando é nomeado por perseguida e esquisita nesse grupo.

Já foi dito que a renovação é uma constante na gíria, porém alguns termos parecem voltar, depois de um período de desaparecimento, com o sentido anterior ou com sentido modificado. Cabello (1991:33) apresenta termos como palha, caroço, etc. No grupo estudado encontramos beca que anteriormente era calça e atualmente é utilizada, para denominar a bunda; e bobo, antes relógio e agora coração.

 

3.        Considerações finais

 

                Verificamos, em suma, que a linguagem criptológica analisada em nível morfossintático, fonético e, principalmente, lexical relacionada ao significante e ao significado vem confirmar que a comunicação dos internos do Sistema Penitenciário do Paraná está ligada intimamente à noção de gíria enquanto signo de grupo. Essa linguagem especial transmite e mantém os valores, conhecimentos e a realidade do grupo com uma forte tendência à concretização do abstrato. Além disso, no ambiente social, empresta um forte traço de denúncia e insatisfação com as diferenças que separam os homens, justificando, dessa forma, a depreciação constante de seres, valores e instituições advindos da sociedade dominante. Portanto, a gíria serve como um instrumento de ataque, uma vez que vai contra as regras da língua falada pela sociedade, e como protesto contra as demais regras desta mesma sociedade. É a forma encontrada para sair do anonimato, para serem diferentes de alguma forma.

 

RESUMO: O objetivo deste artigo é estudar a linguagem do Sistema Penitenciário do Paraná. Tal linguagem se fecha e se auto-defende numa comunicação restrita, tratando a gíria como um signo de grupo. Essa tendência se confirma quanto à tematização e à caracterização formal dos vocábulos em termos de significado e significante.

 

PALAVRAS-CHAVE: gíria, signo de grupo, níveis fonético, morfossintático e semântico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CABELLO, A.R.G. Processo de formação da gíria brasileira, Alfa (São Paulo), v.35,

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FILIPAK, Francisco. Teoria da Metáfora. Curitiba: HDV,1983.

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PRETI, D. A gíria e outros termos. São Paulo: T.A. Queiroz Edusp,1984.



[1] Entende-se por comunicações intergupral a que se estabelece entre internos e funcionários das Penitenciárias e por intragrupal a comunicação entre os internos.