DÊITICOS DISCURSIVOS – UM
CASO ESPECIAL DE REFERÊNCIA INDIRETA?
(DISCOURSE
DEICTICS – A ESPECIAL CASE OF INDIRECT REFERENCE?)
Mônica
Magalhães CAVALCANTE (Universidade Federal do Ceará)
ABSTRACT:
In
this work, we question the inclusion of discourse deictics in the
classificatory scheme of indirect anaphoras. We describe them as elements which
do not recuperate punctual objects of discourse, but they set up a new referent
in discourse as well as they encapsulate, at the same time, propositional
contents.
KEYWORDS: indirect anaphor; discourse dêixis; encapsulation
Tem-se
preconizado, desde Hawkins (1977), que as anáforas associativas (também
denominadas, indistintamente, de anáforas indiretas pela maioria dos
autores) constituem um processo referencial em que um sintagma nominal
“engatilhador” desencadeia um conjunto de associações apoiadas no conhecimento
de mundo dos interlocutores, que respaldam o aparecimento de descrições
definidas não-correferenciais. Na mesma esteira, segue o pensamento de Schwarz
(2000), para quem é imprescindível, para a interpretação da anáfora indireta, a
presença no cotexto de um elemento a que chama de “âncora”, a qual é decisiva
para o acesso mental e para a integração do referente no modelo de mundo do
discurso.
Os
termos “âncora”/ “engatilhador”/ “desencadeador”/ “fonte” são freqüentemente
invocados na literatura para escapar à noção de “antecedente”, em geral
atrelada à idéia de correferencialidade. Desse modo, é a partir dos
significados lexicais da âncora e da expressão anafórica que o destinatário
reconstrói, por exemplo, relações de parte-todo, como “sala-teto”, ou relações
entre predicado e papéis semânticos, como “assassinar-assassino”. São pedaços
associados de informação, como afirma Clark (1977), que se interpretam através
de inferência.
Conforme se vê, a concepção de anáfora associativa, ou indireta, é oriunda não apenas de aspectos referenciais, mas talvez principalmente de determinações lexicais ou sistêmicas. Com base em tal constatação, discutimos, neste trabalho, a pertinência de considerar os fenômenos de encapsulamento como um subtipo de anáfora indireta, descurando do fato de se descreverem, muitas vezes, como dêiticos discursivos. Adotamos, como fundamento teórico, a visão de referente como objetos construídos no discurso e pelo discurso, sustentada por Mondada (1994), Apothéloz
(1995) e outros; os estudos de anáfora indireta de Apothéloz, Reichler-Béguelin (1999) e de Schwarz (2000), em que se basearam Marcuschi (2000) e Koch (2002); e a descrição minuciosa e explicativa dos subtipos de anáfora associativa proposta por Kleiber (2001).
Analisamos o comportamento das anáforas indiretas em 66 exemplares de gêneros textuais, proporcionalmente distribuídos entre editoriais, artigos de opinião, resumos acadêmicos, artigos científicos, cartas pessoais, bilhetes e e-mails. A amostra pertence ao banco de dados do grupo Protexto, que pesquisa, há quase dois anos, sobre gêneros textuais e referenciação, na Universidade Federal do Ceará.
1 Anáfora indireta, não-correferencialidade e
implicitude
Segundo Marcuschi (2000:1), a anáfora indireta pode realizar-se por expressões nominais definidas ou por pronomes “sem que lhes corresponda um antecedente (ou subseqüente) explícito no texto. Trata-se de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não de uma reativação de referentes já conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implícita”. Representam, então, ocorrências de anáfora indireta exemplos como (1) e (2), adaptados de Schwarz (2000):
(1)
O belo vaso da tia Erna é frágil. A porcelana é muito fina.
(2)
Eu quero ir novamente à praia. Adoro o barulho das ondas.
Vale
ressaltar que, nas situações acima, a apreensão da relação associativa só se estabelece com o suporte de conhecimentos
de mundo, de estereótipos culturais
partilhados entre os interlocutores. Muitas vezes, não é suficiente,
pois, o saber lexical que vincula “praia” a “ondas”, em (2), por uma ligação
meronímica[1].
Em (1), por exemplo, a associação metonímica entre “vaso” e “porcelana” não se
basta pela mera aproximação dos significados no léxico. A interpretação só é
alcançada plenamente com a soma de conhecimentos de mundo sobre o material do
tipo porcelana e sobre a idéia de “objeto quebrável” aí implicada.
Vem-se reconhecendo, nos estudos sobre o assunto, que todas as anáforas indiretas, não importa o subtipo, consistem, minimamente, na introdução de um referente novo para o discurso (cf. Prince, 1992), que se manifesta por um elemento formalmente definido, relacionado a uma outra entidade mencionada antes no cotexto, com a qual não mantém ligações de correferencialidade. Constitui, pois, exemplo de anáfora indireta uma ocorrência como:
(3) “oi pessoal, no dia 28 estarei comemorando meu aniversário e gostaria de que todos vocês viessem. sem vocês não vai ter graça nenhuma... depois das 7 podem ir chegando. lembrando mais uma vez, meu endereço é: Av. da Universidade X Apto. X. o prédio fica ao lado do colégio I. e quase na frente do colégio Agapito dos Santos, não dá pra errar!!” (EEm18 – e-mail pessoal)
A expressão nominal definida “o prédio”, em (3), representa uma entidade nova para o discurso, não retoma nenhum referente específico do cotexto e, portanto, não mantém com nenhum objeto discursivo uma relação de correferencialidade. Como argumentamos em estudo anterior (cf. Cavalcante, 2001), o problema da definição e caracterização das anáforas indiretas se inicia logo na própria designação do fenômeno. A uma anáfora que se diz “indireta”, deve corresponder uma anáfora “direta”, evidentemente. Mas tal categoria, de “anáfora direta”, nunca foi descrita de modo suficiente ou satisfatório. Admite-se consensualmente, porém, que uma anáfora direta é necessariamente correferencial e tem fonte explícita.
Desses dois traços, cremos que somente o primeiro distingue, de forma cabal, as anáforas diretas das indiretas. Quanto ao segundo, acontece que as anáforas indiretas remetem igualmente a uma fonte explícita, como o confirmam os exemplos dados até o momento.Diremos até que é somente por meio da explicitude dessa fonte (que não precisa ser necessariamente nominal) que o processo de inferência pode ser iniciado. Mesmo as categorias classificadas por Marcuschi (2000) como “anáforas indiretas esquemáticas”[2] (ver também Melo, 2001) preservam a fonte cotextual, conforme se pode encontrar no exemplo (4):
(4) “A: Maria pretende casar no final
do ano
B: e o que é que ele
faz?” (Marcuschi, 2000:10)
Se atentarmos para o tipo de recuperação referencial que se processa em (4), veremos que é como se saltássemos uma etapa intermediária, aquela em que se instaura a conexão entre o predicado “casar” e o argumento “o marido”, o qual não se explicita no cotexto e já aparece substituído pelo pronome “ele”. Neste caso, diremos que existe aí a implicitude do SN definido que estabelece a anáfora indireta, sendo semanticamente associado à fonte “casar”. Mas não podemos sustentar que haja implicitude da fonte. Segue-se, deste raciocínio, que só resta o traço de correferencialidade para separar as anáforas diretas das indiretas. A ele se soma a característica do status informacional: só as indiretas introduzem um referente novo para o discurso, de vez que, se toda anáfora direta é correferencial, ela é necessariamente velha para o discurso. Tome-se o exemplo (5), abaixo:
(5) “Ontem,
nós fomos ao circo. Os melhores foram os trapezistas e o número com
leões.” (adaptado de Schwarz, 2000)
Neste
exemplo, os referentes novos “os trapezistas” e “o número com leões” remetem –
mas não retomam correferencialmente - a uma fonte explícita no cotexto
anterior: “o circo”. Estes anafóricos indiretos se prendem à fonte por um elo
de inclusão, ou de ingrediência. Vimos defendendo desde trabalho anterior (cf.,
mais uma vez, Cavalcante, 2001) que a fonte que desencadeia as anáforas
indiretas está sempre explícita no cotexto e que, por esse prisma, ela
representa uma condição fundamental para que o fenômeno se instale. Outra
condição que apontamos foi de natureza sócio-cognitiva: há sempre recorrência a
conhecimentos compartilhados para a viabilização das inferências no
processamento das anáforas diretas, mas principalmente no das anáforas
indiretas. Por isso, o importante não é indagar se, nas anáforas indiretas, há
remissão ao cotexto e ao conhecimento comum, mas, sim, em que grau, ou seja,
que diferenças semântico-discursivas estão assinaladas nas diversas fontes no
cotexto e quanto de inferência pragmática se exige em cada tipo de relação.
Dadas
as características básicas da referenciação anafórica direta e indireta,
passamos, agora, a questionar se é possível conceber os encapsulamentos como um
subtipo de anáfora indireta.
2 Dêixis discursiva,
encapsulamento e referenciação difusa
Como define Conte (1996:1), “o encapsulamento anafórico é um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente [ou conseqüente] do texto”. Como ocorrência de anáfora encapsuladora, tratado por Francis (1994) como “rótulo”, temos o exemplo (6), em que o elemento referencial em destaque sintetiza e rotula informações difusas do cotexto:
(6)
“Na continuação da série de
reportagens sobre a seca no semi-árido brasileiro, ontem, O POVO constatou
a desarticulação da representação política das áreas abrangidas pelo fenômeno e
sua conseqüência: a descontinuidade dos programas destinados a enfrentá-lo. O
quadro apresentado demonstra a falta de abrangência de visão dos que, pela
lógica, deveriam ser os mais diretamente interessados na sua solução.” (JoEd1,
editorial)
Podemos dizer
que, semelhantemente às anáforas indiretas, os
encapsuladores também não são correferenciais (nem mesmo retomam parcialmente
nenhum objeto específico); introduzem um referente novo para o discurso; e só
podem ser recuperados por inferência a partir de elementos engatilhadores.
Entretanto, é preciso notar que, ao contrário das anáforas indiretas, não
remetem a nenhuma expressão cotextual específica, pontual, que lhes sirva de
fonte e, além disso, apresentam um traço completamente distinto tanto das
anáforas diretas quanto das indiretas: encapsulam conteúdos proposicionais
precedentes ou subseqüentes. Em (6), por exemplo, a anáfora encapsuladora “o
quadro apresentado” resume a descrição feita previamente no cotexto, mas não
remete pontualmente a nenhuma expressão anterior ou posterior. Logo só
permanece como traço de equivalência entre os dois fenômenos o fato de ambos
introduzirem referentes novos no discurso, sob a base do conhecido. Mas isso
não deve ser o bastante para incluir os encapsuladores entre os subtipos de
anáfora indireta. Em se tratando de encapsuladores dêiticos discursivos, ou
seja, não-anafóricos, como em (7), a distinção se torna ainda mais nítida: ao
contrário das anáforas indiretas, os dêiticos discursivos (sempre
encapsuladores) portam, como a própria designação o denuncia, um elemento
dêitico, indicial, que lhes imprime um traço de subjetividade:
(7)
“Do ponto de vista econômico, há aspectos positivos a serem retirados de uma
área onde o sol é abundante e onde a tecnologia poderá transformá-la numa
referência de produtividade no setor primário, com a possibilidade de múltiplas
safras anuais de frutos tropicais, por exemplo, com a irrigação, o que
reforçará de uma forma espantosa as exportações brasileiras. Esse privilégio
natural nos dá vantagem em relação a uma região do porte da Califórnia
americana.” (JoEd1,
editorial)
Além de
sumariar o quadro descritivo do discurso precedente, o dêitico discursivo “esse
privilégio natural” direciona a atenção do interlocutor, por meio do dêitico, para
o novo referente introduzido, o que não acontece com as anáforas indiretas.
Saliente-se também que os encapsuladores de modo geral não se fixam por uma
relação de associação lexical, comum às anáforas indiretas. E acrescente-se,
por fim, que eles podem constituir um fabuloso recurso de veiculação de
conteúdos avaliativos, como em (7).
Neste artigo,
demonstramos quais as características que realmente diferenciam as anáforas
indiretas das diretas, a saber: a não-correferencialidade e o status
informacional de novo para o discurso. Defendemos, ainda, o ponto de vista de
que os encapsuladores anafóricos devem ser tratados como uma categoria à parte,
por remeterem não a uma fonte específica, mas a conteúdos proposicionais
inteiros, e por concretizarem uma operação de sumarização, não típica das
anáforas indiretas.
Para concluir,
gostaríamos de deixar em aberto uma reflexão que nos parece de grande
pertinência: é possível haver uma fusão dos dois processos referenciais – de
referenciação indireta e de dêixis discursiva -, sem que nenhum dos dois se
descaracterize? Exemplos como (8) nos levam a pensar que sim:
(8) “Terminada a tarefa de desvendar o universo
das competências, Roberta e Paola se uniram aos outros jornalistas e artistas gráficos
da revista para um fantástico desafio: conhecer a realidade das escolas rurais
e de seus professores. Como será que eles vêem as alterações que estão
sacudindo a vida de educadores e alunos? Seu dia-a-dia permite que se sintam
integrados às novas propostas? Ou o isolamento é grande? Algumas dessas
respostas você verá em nossas páginas no mês que vem.” (JoCaL01 – carta ao
leitor)
Embora raros,
casos como (8) se revelam perfeitamente possíveis. A expressão “algumas dessas
respostas” se comporta como dêitico-discursiva pela presença do dêitico que
monitora o foco de atenção dos participantes e pelo caráter resumidor de
proposições. Mas se comporta também como uma referenciação indireta, ou
inferencial, porque, embora remeta às “perguntas” explicitadas no cotexto
prévio, refere-se às respostas que advirão das perguntas. A constatação nos
mostra que os dois fenômenos não são mutuamente excludentes.
RESUMO: Neste trabalho,
questionamos a inclusão de dêiticos discursivos no quadro classificatório das
anáforas indiretas. Descrevemo-los como elementos que não recuperam objetos de
discurso pontuais, mas instituem um referente novo no discurso, simultaneamente
encapsulando conteúdos proposicionais inteiros.
PALAVRAS-CHAVE: anáfora
indireta; dêixis discursiva; encapsulamento
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APOTHÉLOZ, Denis. (1995). Rôle et
fonctionnement de l'anaphore dans la
dynamique textuelle. Tese (Doutorado) - Université de Neuchâtel.
BERRENDONNER, A. Anaphore associative et meréologie. Recherches sur
la philosophie et le langage, n.16, 1995.
CAVALCANTE, Mônica M.
(2000). Expressões indiciais em contextos
de uso: por uma caracterização dos dêiticos discursivos. Recife, 205p. Tese
/Doutorado em Lingüística/ – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
_____. Expressões
indiciais e anáforas indiretas. / Comunicação apresentada no I Colóquio e
IV Congresso Latino-Americano de Estudos do Discurso. Recife: UFPE, 2001/.
CONTE, Maria-Elisabeth. Anaphoric encapsulation. Belgian
Journal of linguistics, 10, 1996. p. 1-10.
FRANCIS, Gill. Labelling discourse: an aspect of
nominal-group lexical cohesion. In: COULTHARD, M. Advances in written analysis. London and New York: Ed. Routledge, 1994.
p. 83-101.
HAWKINS, J. A. The pragmatics of
definiteness. Part I. Linguistische Berichte. Los Angeles:
University of California, 1977. n. 47. p. 1-27.
KLEIBER, G. L’anaphore associative. Paris: Presses
Universitaires de France, 2001.
KOCH, Ingedore G. V. Desvendando
os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
LYONS, John. Semantics. London: Cambridge University Press, 1977.
2v.
MARCUSCHI, L.A. Anáfora
indireta: o barco textual e suas âncoras. /Texto remetido para publicação
nos anais do Congresso da CelSul. Curitiba, 2000./
MELO, Cinthya Lúcia M. T. S.
de. Anáfora indireta esquemática pronominal: uma anáfora coletiva
genérica e coletiva restritiva. Recife, 143p. Dissertação /Mestrado em
Lingüística/ - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
PRINCE, E.. The ZPG Letter: subjects, definiteness,
and information-status. In: MANN, W.C.; THOMPSON, S.A . (eds.) Discourse
description: diverse linguistic analyses of a fund-raising text. Amsterdan:
J. Benjamins, 1992. p. 295-325.
SCHWARZ, M. Indirekte Anaphern in Texten. Tübingen: Niemeyer, 2000.
[1] Como definem Lyons (1977), Berrendonner ( ) e outros, a meronímia se descreve como uma relação assimétrica e hierárquica de inclusão; uma relação a que o lógico Lésniewski chama de ‘ingrediência’.
[2] “AI esquemáticas realizadas
por pronomes introdutores de referentes: Estes pronomes não são retomadas de referentes anteriormente
introduzidos, mas ativadores de novos referentes com base em elementos prévios
que aparecem no discurso.” (Marcuschi, 2000, p.10)