O UNIVERSO DIALETOLÓGICO DO PLANTIO E DAS PLANTAS MEDICINAIS DA RESERVA INDÍGENA “FRANCISCO HORTA BARBOSA”.
(THE DIALECTOLOGICAL UNIVERSE OF THE PLANTATION AND THE
MEDICINAL PLANTS OF THE ABORIGINAL RESERVE
“FRANCISCO HORTA BARBOSA”)
Sandra ESPINDOLA (Universidade Estadual Paulista-Assis/SP)
KEYWORDS: linguistic
variation; léxical; plantation; medicinal plants.
0. Preliminares históricas
A Reserva indígena “Francisco Horta Barbosa”, situada
nos arredores da cidade de Dourados no Mato Grosso do Sul, como acontece com
outras reservas indígenas, que se localizam muito próximas às áreas urbanas,
sofreu, no desenrolar dos anos uma influência cada vez maior da sociedade
não-índia, não obstante, a influência sofrida pelas outras etnias presentes
dentro desta mesma reserva, a Terena, a Kayowá e a Guarani, que se
interpenetram lingüisticamente. A influência maior se dá, no entanto, entre a
língua Kayowá e Guarani, que já se denomina Kayowá-guarani.
Neste trabalho, enfocaremos a
variação lingüística lexical na fala de língua portuguesa que o Kayowá-guarani
apresenta em seu falar cotidiano, uma vez que, o português tem se tornado a
segunda língua desse povo.
Ainda bem pequena, a criança indígena toma contato com a sociedade
não-índia, através dos pais, que as trazem à cidade a pé, de bicicleta ou de
carroça para vender legumes ou ainda, para pedir comida ou roupas velhas.
Portanto, bem cedo, ela aprende a usar a língua portuguesa. Quando estão com os
seus, falam “na língua”, como eles dizem; quando na presença de um não-índio,
utilizam a língua portuguesa.
No caso dos Kayowá, muitos
são os fatores que poderiam levar à perda de sua cultura e da identidade
lingüística. O casamento entre as etnias dentro da Reserva tem se revelado
constante e com ele a mistura das línguas, mas não só entre as etnias
indígenas, o enlace entre índios e não-índios, também se tornou corriqueiro.
Outro fator, que possivelmente leva ao abandono de suas tradições é a invasão
da cultura do não-índio, como bailes e esportes – o futebol principalmente.
1.A língua e a sociedade
Muitos são os estudos
realizados sobre a linguagem e sobre a relação entre língua e sociedade. Com o
advento da informática, uma nova linguagem surgiu e se alarga a cada dia com
termos novos, que se incorporam ao nosso falar cotidiano.Vivemos cercados de
signos lingüísticos, das mais diversas formas, e várias são as ciências que se
responsabilizam em estudá-los. Assim se refere Preti (1994:2) com relação à
função da língua:
“A
língua funciona como um elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade
em que ele atua. É através dela que a realidade se transforma em signos, pela
associação de significantes sonoros e significados arbitrários, com os quais se
processa a comunicação lingüística”.
Essa idéia é corroborada por
Jacob L. May (1998:76):
“A
língua se relaciona com a sociedade porque é a expressão das necessidades
humanas de se congregar socialmente, de construir e desenvolver o mundo. A
língua não é somente a expressão da “alma”ou do “íntimo”, ou de que quer que seja,
do indivíduo; é, acima de tudo, a maneira pela qual a sociedade se expressa
como se seus membros fossem a sua boca.”
Realmente, sociedade e
indivíduo coexistem na língua. Segundo a Sociolingüística são vários os fatores
lingüísticos e extralingüísticos que interferem na maneira de falar de um povo.
Desta perspectiva, a multiplicidade dos processos de miscigenação ocorridos
entre as três etnias indígenas, Terena, Kayowá e Guarani, que convivem
pacificamente na “Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa”, conseguem explicar
as diferenças lingüísticas, como também o léxico cambiante, que, ora eles
emprestam do não-índio, ora das outras tribos.
Esse léxico vem se incorporando à fala Kayowá-guarani no decorrer dos tempos
sem nenhum problema.
Desta forma, é consenso até entre
os próprios Kayowá que sua tribo já não possui mais sua própria língua, uma
vez, que esta se fundiu com a língua do Guarani, por isso a designação
Kayowá-guarani. À influência Guarani soma-se à Terena e à do não-índio que
convive muito com o indígena da Reserva, resultando num constante processo de
variações lexicais, como também da inserção de outros léxicos à do
Kayowá-Guarani.
Dessa convivência entre as
três etnias, a matriz lingüística de cada tribo foi se transformando, a língua
kayowá, por exemplo, se modificou e atualmente já não é mais a mesma da sua
gênese, uma vez que, incorporou vocábulos, expressões e até o estilo da sua
oralidade vem carregada de influência das outras línguas presentes na Reserva,
sobretudo a guarani e a portuguesa. Segundo
o cacique, muitos vocábulos do idioma kayowá vêm sendo substituídos pelos da
língua guarani.
Se nossa identidade cultural está estritamente
ligada à língua que possuímos, a perda dessa identidade pode estar bem próxima
para os Kayowá, conforme registrou em entrevista o próprio cacique da tribo,
quando da afirmação de que os jovens Kayowá não se interessam pelos cantos, nem
pelas rezas e se desinteressam cada vez mais pela sua língua, trocando-a
facilmente pelo português. Esse desmerecimento, e até desprezo mesmo, pelo
próprio idioma, remonta aos séculos. Sabe-se de antemão que a língua é uma
imposição do poder. Representa o status
do povo vencedor sobre o vencido. Por isso, corre-se o risco da cultura Kayowá
esvaecer aos poucos e, conseqüentemente, sua língua. Se não a registrarmos
nesse momento histórico provavelmente nunca mais conseguiremos recuperá-la.
Para isso, a sociolingüística é uma disciplina fundamental. Através dela
conseguiremos registrar a fala no momento presente e observarmos quais os
processos que decorrem da aquisição do português. A dialetologia, por sua vez,
vem contribuindo de forma veemente para a manutenção dos vocábulos e expressões
próprias de cada povo, pelo seu registro escrito.
2.O desenho do trabalho
Este projeto, tendo como suporte teórico a
Dialetologia, assessorada pela ciência Sociolingüística, limitou-se em
entrevistar os índios Kayowá e os Guarani. Como se seguem os parâmetros
teórico-metodológicos da Sociolingüística, pois se trata de estudo de línguas
em contato, a escolha dos informantes ocorreu da seguinte forma: foram
entrevistados pessoas do sexo masculino e
do sexo feminino. Ambos de faixa etária entre 30 – 50 anos. Seguindo as
orientações do Professor Doutor Pedro Caruso – orientador deste trabalho,
elaborou-se um questionário a fim de que o informante se sentisse à vontade
para falar.
Várias visitas foram
realizadas até a Reserva para a concretização desse empreendimento. Por uma
pessoa de aceitação entre os indígenas, a pesquisadora conseguiu se aproximar e
conversar com pessoas indígenas que moram bem distante, dentro da própria
Reserva e foi recebida com respeito e atenção, dentro do que se pode chamar
assim, tendo em vista a desconfiança natural que o índio possui do não-índio, que está sempre por lá, seja pela religião
ou por outra instituição, como universidades, desenvolvendo projetos que nem
sempre é do agrado deles. Os temas escolhidos para as entrevistas foram
divididos em dois grandes blocos: o primeiro, as plantações e o processo de
colheita, as partes constitutivas do milho, banana, mandioca e batata-doce e
utensílios utilizados no plantio; o segundo, as plantas medicinais e seu uso.
3.Resultados obtidos
3.1 Universo do plantio
A multiplicidade lingüística, revelada pelas marcas
da oralidade, atesta a influência da realidade social na qual se inserem os
índios Kayowás, deixando à mostra, muitas vezes, a origem de vários vocábulos
da língua portuguesa. Por causa da proximidade com o não-índio, uma imensa gama
de vocábulos se modificaram ou desapareceram, cedendo lugar a outros, criados a
partir dessas influências.
Com relação às plantações, colheitas, partes
constitutivas das plantas cultivadas e dos utensílios utilizados na Reserva,
temos: matraca – objeto utilizado em substituição ao arado
puxado por animal, como plantadeira manual; olho - pequena saliência da rama de mandioca; vingar – germinação da planta, quando a planta mostra os primeiros brotos; gema de ovo – qualidade de mandioca,
ou tipo de batata-doce que, após
cozida, toma uma tonalidade amarela; carapé - qualidade de mandioca amarela
baixinha, que está pronta para ser consumida de 4 a 5 meses após o plantio; bassorinha folha-fina - qualidade de mandioca da rama vermelha; estakadioá - o que o índio Kayowá chama de mandioca macia;
agôa – ação de criar água
dentro da batata ou da mandioca, “a mandioca é boa, ela não agôa o ano inteiro e fica bem macia”; batata roba – um dos tipos de
batata-doce, se diferencia da “batata vermelha, batata branca, gema de ovo,
amarela, folha larga”; moranguinha
trechã – tipo de batata-doce que não
é cozida, só assada; milho saboró – milho macio, de fazer bolo, biju, etc. catetinha – tipo de milho que já não existe mais na Reserva; milhau - mesmo que milharau; farinheira
– empresa que negocia o milho para
transformá-lo em farinha;embonecando,
granando – nome dado ao milho quando
este está se formando, quando estão despontando as primeiras espigas; pendoar
– ato de criar pendão, de soltar as
primeiras mudas; apontar o imbigo –
quando o pé de banana começa a dar os
primeiros cachos.
Alguns vocábulos, como imbigo, vingar, rama, entre outros fazem
parte do universo cultural do não-índio, pois são palavras que estão
entranhadas nessa cultura desde o início do processo de aculturação e foram se
incorporando à fala do português como algo natural. Outros vocábulos
incorporaram-se ao léxico regional, como
puchero, por exemplo, que designa uma sopa de carne com ossos e vários
tipos de legumes, ou seja, é uma versão do puchero
indígena que consta como ingredientes apenas a carne com osso, de preferência
uma “canela de vaca” ganhada num açougue, e a mandioca sem nenhum tipo de
tempero ou cheiro verde, apenas sal para dar gosto. Vale ressaltar, ainda,
empréstimos, que nada mais são que o reflexo desse processo de inter-relação
social e lingüístico desses vários povos, a palavra pacová, que significa um dedo de alguma coisa, e aqui dedo no
sentido adverbial de “um pouco” de algo, é utilizado naturalmente como
substituição da palavra em português, revelando a constância do processo de
interação lingüística e cultural. Por outro lado, a palavra puchero – do kayowá-guarani, torna-se um
empréstimo lingüístico corrente na fala portuguesa, usada como sinônimo de
sopa.
Várias expressões indígenas
também já fazem parte da cultura da língua portuguesa, sofrendo algumas
variações, vejamos a expressão “um dedinho de prosa”, encontrada em várias
regiões do país. Muitas outras nasceram com o povo nativo de nossa Terra.
Vejamos mais algumas expressões e vocábulo presentes na Reserva: um
dedo de banana – um punhado de banana; pacová – o mesmo que dedo; puchero –
sopa de carne com osso e mandioca; gamela – prato pequeno feito de pau; gaiada - variação lingüística de
galhada, lenha para queimar. graxa – gordura do osso, óleo, banha – em
zonas rurais, ou até nas periferias das cidades do interior não é incomum essa
troca de “óleo” como sinônimo de “graxa”; xinxa
– bebida fermentada à base de milho. Essa
bebida é muito utilizada dentro da Reserva por todas as tribos, geralmente é
feita para festas, como aniversários, por exemplo. Trata-se de uma cerimônia,
em que todos dançam e bebem a noite inteira, inclusive crianças de qualquer
idade. Interessante também
observar a mistura que ocorre
entre as duas línguas: o português e o
kayowá-guarani originando “formações híbridas” (Cf. Isquerdo e Oliveira,
2000), acontecimentos usuais quando se
trata de línguas em contato: ficar
bicharedu – ficar forte, com
vitalidade - trata-se de uma expressão restrita ao povo indígena, esta
expressão não encontra eco na cultura do não-índio.
3.2 Universo das plantas
medicinais
As plantas medicinais
encontradas na Reserva são muitas, algumas já fazem parte da cultura do
não-índio, outras, no entanto, são desconhecidas, ou talvez só possuam nomes
diferentes. Vejamos algumas: coqueirinho
– planta semelhante à cebola, boa
para diarréia ou shiri – o mesmo que diarréia; cabeça-de-negro
– remédio para vômito; fedegoso – raiz esmagada com sal para cicatrizar, usada para curar imbiguinho cru, o umbigo do bebê recém
nascido não cicatrizado; mangerão –
folhas utilizadas como chá para amenizar
cólica de bebê e dor de ouvido; folha
de laranja – chá de folha de laranja
com banha de galinha, para gripe; Chico
magro, imbira ou sapé – deixa a casca
secar na sombra e toma com chá de bugre; juá – planta de fruta amarela, é um espinho,
serve para sugar tumores, extirpá-los,
retira a semente de dentro da fruta e coloca-se sobre o tumor; outro
remédio usado para fazer o tumor vir à fura é o sabonete raspado: raspa-se o
sabonete e coloca-se sobre o tumor, antigamente se fazia isso com o sabão, no
entanto, ressecava muito a pele; outro remédio para esse mal é a banha de tatu
que segue o mesmo procedimento dos
outros remédios; orquídea de folha
larga- serve para curar “dor de urina” e problema de próstata;
nó de cachorro, nó comprido e o nozinho - remédio que pode ser
perigoso, pode até levar à morte, utilizado quando o homem “não presta mais”,
conhecido como “remédio para esquentar”, ou seja, contra a impotência sexual; pindó – casca que serve para estancar hemorragia; para descer ou fazer parar
a menstruação, para recaída pós-parto.
Pano-de-cozinha – não se trata de planta, mas
do próprio pano sujo de cinza do fogão à lenha, o pano deve ser queimado, serve
para estancar o sangue; formar uma lisga – o mesmo que formar uma liga, dar ligamento; pena de galinha preta e
queimada - a pena queimada, só serve
se a galinha for preta, para cicatrizar umbigo de bebê;
4. Para finalizar
Muito ainda há para se obter de mostras lingüísticas
das tribos acima descritas. Poderia se conseguir um número superior de palavras
e expressões não fossem os índios tão
arredios. Por não confiar no não-índio, eles não se abrem ao diálogo, é necessário,
às vezes muito esforço do pesquisador para conseguir algo, pois eles escondem
suas peculiaridades lingüísticas, procurando não se exporem através de suas
expressões comuns e de palavras de sua intimidade.
RESUMO: O objetivo deste
trabalho é focalizar a variação lingüística lexical presente na fala de língua portuguesa do índio Kayowá-guarani, a
partir da perspectiva do universo do plantio e das plantas medicinais
utilizadas por eles.
PALAVRAS-CHAVE: plantio;
plantas medicinais; léxico; variação lingüística.
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