LEITURAS ACERCA D’A DEMANDA DO SANTO GRAAL

(READINGS OF A DEMANDA DO SANTO GRAAL)

 

 

Sandra Salviato TERRA (Unesp – Araraquara/ Fapesp)

 

 

ABSTRACT: This paper intends to achieve a study of the ideological and allegorical elements of the romance A Demanda do Santo Graal (Irene Freire Nunes’s edition, 1995), using to this, the episode of the death of Persival’s sister.

 

 

KEYWORDS: romance of chivalry; Christian elements; allegory;

 

 

0.        Introdução

 

O presente trabalho tem por objetivo apresentar alguns postulados sócio-cristãos presentes na composição da novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal (edição de Irene Freire Nunes, 1995). A Demanda do Santo Graal é uma composição do século XIII (1230 – 1240) e, embora sua autoria não possa ser determinada, acredita-se que ela tenha sido composta por algum membro de ordem eclesiástica. Essa idéia apoia-se na presença de inúmeros elementos textuais que implicam em processos de leitura  com diversas apreensões de significado, em sua maioria, regidos pelo pensamento religioso. Pretende-se evidenciar, por meio da análise de um episódio da narrativa, a saber, “A morte da irmã de Persival” (Nunes, 1995:329), a relação ideológica/cristã e o movimento especular que se manifesta por meio de alegorias e símbolos. No caso d’A Demanda, as alegorias apontam para o mundo espiritual, devido ao enfoque da obra nos princípios regidos pela religião e pela interpretação que se faz dos escritos religiosos. Evidentemente, não se ignoram os elementos de origem celta presentes no texto, mas busca-se evidenciar, aqui, os elementos advindos do processo de assimilação do cristianismo.

A Demanda do Santo Graal é um texto  de marcas reacionárias em relação ao propósito básico das novelas de cavalaria, uma vez que adota como modelo a existência de cavaleiros/sacerdotes, ou seja, cavaleiros mais preocupados com a vida espiritual e batalhas de valor alegórico do que com o tradicional enfoque nas damas e nas lutas. Dessa forma, o texto d’A Demanda, apropria-se de um modelo interpretativo aplicável, na Idade Média, aos textos sacros, em especial os textos bíblicos. Esse modelo poderia ser resumido da máxima de Rabão Mauro (apud Gurevitch, 1991:104) “ Littera gesta docet, quid credes allegoria, moralis quo agas, quo tendas anagogia”, que poderia ser compreendida da seguinte maneira: O sentido literal informa sobre aquilo que se passou, a alegoria sobre aquilo em que acreditas, a moral indica como agir e a anagogia para onde te encaminhas.

                De acordo com a máxima, pode-se realizar a leitura de textos buscando seu sentido literal, ou seja, a leitura pautada no plano das ações dos personagens e pode-se, também, observar outro tipo de leitura – a alegórica. Nesse sentido, o texto torna-se um vasto universo de símbolos e ilustrações que remetem ao universo mítico cristão. Nessa leitura, inserem-se as repreensões morais e as relações anagógicas que implicam na interpretação de um mundo transcendente. Nesse estudo, observa-se como os procedimentos citados apresentam-se,  por meio de diversas acepções de leitura do texto, bem como, a atuação desses procedimentos na construção de sentido da obra

 

 

1.        Perspectiva teórica e análise

 

 

O texto d’A Demanda propõe-se como um modelo não só de conduta carnal, mas espiritual. Assim, a leitura, em seu sentido literal, apresenta uma narrativa, uma história a ser desfrutada pelo leitor. A leitura alegórica, permite a interpretação diferente, que segundo Compagnon (1999:56), se dá pela tentativa de compreender a “intenção oculta de um texto pelo deciframento de suas figuras. Sendo assim, tem-se na obra a alegoria como uma questão de intenção, vinda da parte de uma consciência criativa que assume uma concepção cristã de compreensão do mundo, e a alegoria como uma questão de estilo, matéria de composição da obra enquanto escritura.

Cumpre considerar, ainda, que o pensamento medieval é caracterizado pela alegoria e isso faz com que o mundo seja visualizado como um símbolo, regido e estruturado por Deus, uma vez que o pensamento religioso dominava a sociedade. Dessa forma, as realidades materiais e as realidades imaginárias confundiam-se, sendo passíveis de alegorização. O homem medieval concebia um dualismo de idéias, tais como o Bem e o Mal, que por sua vez relaciona-se ao alto e ao baixo, entre outras relações.

Esse dualismo típico do homem medieval é que fortalecia a concepção alegórica do mundo. Como a própria etimologia da palavra apresenta, a alegoria pauta-se na existência do outro. Benjamim (1961) concebe a alegoria como o discurso através do outro. Assim, sendo a alegoria mais que sua clássica definição de representação concreta de uma idéia abstrata, ela traduz-se como um discurso no qual se utiliza o outro como referência. Kothe (1986:6) afirma que a alegoria é o “cerne da obra de arte e de sua representação”.

A afirmação de Kothe traz uma reflexão acerca do processo artístico. Entretanto, há períodos, como é o caso do período medieval, no qual a alegoria constitui-se, também, como forma estilística, traduzindo-se como uma prioridade para a apresentação da arte. Na literatura e, especificamente, nas novelas de cavalaria, pode-se observar esse uso com bastante propriedade.

É importante observar que a alegoria presente nos textos estudados aqui não é apenas recurso estilístico, mas também um instrumento ideológico.

Assim, pode-se realizar uma leitura baseada no plano das aventuras, da história, e outra (revelada ou não textualmente) no plano das figuras empreendidas nas aventuras.

Segundo Todorov (1980: 64), A Demanda do Santo Graal é uma narrativa em  que  “ a importância do acontecimento é menor do que a percepção que temos dele, do grau de conhecimento que dele possuímos. Todorov dá a esse tipo de narrativa o nome de gnoseológica ou epistêmica. Dessa forma, podemos considerar que, n’A Demanda, o desvelar da alegoria torna-se fator fundamental para a percepção do significado da obra. Com isso, não se quer diminuir o interessante enlaçar dos episódios em sua feitura literária, mas sim unir, a esse enlaçar, o componente fundamental da obra, seu significado que extrapola os limites dos acontecimentos.

N’A Demanda do Santo Graal a alegoria apresenta-se como meio de veiculação das ideologias textuais. O tempo e o espaço nas narrativas também transformam-se em alegorias, na medida em que interagem, harmonicamente, com outras alegorias do texto.

Tendo por base essas reflexões acerca da alegoria é que se pode realizar a leitura do episódio d’A Demanda do Santo Graal, escolhido para esse estudo.

O episódio relata a morte da irmã de Persival (Nunes, 1995: 329). É importante ressaltar que A Demanda apresenta as personagens femininas de forma bastante estereotipada. São ressaltados os elementos que apontam para a castidade e a pureza, sendo que os atributos físicos, dentre vários outros elementos, são considerados armadilhas do Mal. A irmã de Persival é um exemplo moral, primeiramente direcionado às mulheres e, em Segunda instância, na forma de alegoria, direcionado aos cristãos. Essa personagem é uma jovem pura e casta, irmã de Persival, um dos melhores e mais puros cavaleiros da narrativa. Durante um bom trecho do texto, a irmã de Persival acompanha os três protagonistas da narrativa (Boorz, Galaaz e Persival) em suas incursões até que eles chegam a um castelo e são aprisionados.

A dona do castelo onde são aprisionados os jovens era leprosa e o costume do lugar consistia no fato de que todas as jovens virgens que por ali passassem deveriam encher uma escudela de sangue, para que a dona do castelo nele se banhasse, na tentativa de curar-se; se isso não fosse feito, os cavaleiros seriam mortos. Por ser muito jovem e delicada, a irmã de Persival não resistiria à sangria, então os jovens cavaleiros decidiram lutar por ela, mesmo que isso pudesse implicar no fim da busca ao Graal. No entanto, a donzela decidiu realizar o sacrifício, de modo que os cavaleiros pudessem seguir seu caminho em busca do Graal. Assim, a jovem sacrifica-se em favor da dona do castelo e de seus amigos. Assim diz o texto d’A Demanda (1995:329):

 

 

Dês i ferirom-na no braço destro de ũũ ferro qual convém a aquel mester e o sangue começou a sair e ela se sinou e comendou-se a Nosso Senhor. E depois disse aa dona:

- Eu som morta por guarecerdes vós. Por Deus rogade por minha alma.

E depois que a escudela foi chea de sangue esmoreceu ela e os III cavaleiros forom-lhe ao braço e estancarom-lhe o sangue e çarraron-lhe a ferida. E depois jouve gram peça esmorecida e acordou e disse:

- Irmão Persival, eu moiro por saúde desta dona. (Nunes, 1995:329)

 

 

 

Vê-se que o auto-sacrifício aproxima a donzela da figura de Cristo. O sangue, símbolo da redenção cristã, é altamente explorado nesse episódio. A aproximação com o sacrifício de Cristo estende-se  até a frase que evoca o perdão divino e exalta a piedade em relação aos opressores (retomando Cristo que, em sua morte, segundo os evangelhos, perdoou seus inimigos e opressores). O sacrifício da irmã de Persival e o derramamento de seu sangue curam a mulher leprosa e também permite que os três cavaleiros, presos no castelo, prossigam suas “aventuras” em busca do santo Graal. A aparente fragilidade da jovem em relação aos fortes cavaleiros também remete a Cristo, que como um cordeiro sacrificial admite em si o sacrifício em favor de outros.

Da mesma sorte,  a concepção teológica cristã admite que o sacrifício de Cristo é a chave que permite o acesso a Deus, que redime o homem, e o faz  livre para a busca divina, como consta no livro bíblico de João “ Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito para que todo aquele que Nele crê não pereça mas tenha a vida eterna” (João, cap.3, v.16). Da mesma forma, o sacrifício de Cristo serviu aos maus (alegoria da dona do castelo) e aos bons (alegoria dos cavaleiros)

Isso é reforçado pela simbologia existente na  seqüência do texto, quando uma grande tempestade derruba os muros do castelo, aparentemente indestrutíveis (Nunes, 1995:330); tão fortes eram esses muros que os melhores cavaleiros não o puderam transpor. Vê-se, aqui, a água como símbolo de transformação. A quebra do muro indica a liberdade e o fim da prisão de tantos outros que poderiam por ali passar - tudo isso, motivado pelo sacrifício da donzela que representa o sacrifício de Cristo.

A irmã de Persival, durante vários episódios, tinha acompanhado os três cavaleiros, mostrando a mesma dignidade e honra que estes, bem como fé e vida compatíveis às deles (fato demonstrado pela presença dela, em episódios anteriores, na barca do rei Salomão, barca, esta, preparada por esse rei de Israel há séculos para o dia em que seria usada por Galaaz; a barca, que era sustentada pela fé (Nunes, 1995:318) e pela providência divina, conduziu pelos mares os heróis até Corberic, o castelo do Graal).

É importante notar que a figura da irmã de Persival é sublime, santa e, portanto, digna de admiração e respeito pelos três cavaleiros que fazem grande lamento pela  morte dela. O fato dela figurar entre os dois castos e fiéis cavaleiros d’A Demanda, Galaaz e Persival, só pode ser visto como uma exaltação a essa personagem e, de certa forma, uma homenagem a um procedimento cristão efetivado por uma mulher. Note-se que essa personagem não era uma mulher comum, mas possuidora de uma aura de santidade que a eleva à condição de exemplo a ser seguido, em um texto no qual evidencia-se olhares apreensivos em relação ao feminino.

É interessante notar que, embora ativamente participante de boa parte das aventuras de Galaaz, Percival e Boorz, a irmã de Persival não possui um nome próprio (nomeação que individualiza e traz à existência as coisas), o que a torna uma personagem  cuja existência é anulada em benefício de suas ações; ou seja, não importa seu nome ou quem ela seja ( só temos a referência “irmã de Persival” -  logo, o referente é Persival); importam somente suas ações, e estas sim são dignas de serem lembradas e alegorizadas.

                Pode-se concluir, nessa breve análise, que a narrativa d’A Demanda do Santo Graal procura estabelecer, pelo uso da alegoria e das representações de âmbito moral e religioso um movimento especular, por meio do qual o leitor pode, durante sua leitura, visualizar o universo cristão e as interpretações clericais dos escritos bíblicos, de modo que se veicule um processo ideológico proveniente do direcionamento didático de alegorias e figuras. Esse direcionamento instaura-se por todo o texto gerando ligações entre o tema geral da narrativa, que é a busca do Graal (alegoria do Espírito Santo, da comunhão com Deus), e os episódios internos, conferindo o desencadeamento necessário para a criação de uma unidade discursiva.

 

 

RESUMO: O presente trabalho busca realizar um estudo dos elementos ideológicos e alegóricos d’A Demanda do Santo Graal (edição de Irene Freire Nunes, 1995), usando para isto, o episódio da morte da irmã de Persival.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: novela de cavalaria; elementos cristãos; alegoria.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BENJAMIM, Walter. Sobre el problema de la filosofia futura y otros ensayos. Trad. Roberto J. Vernengo. Caracas: Monte Avila Editores, 1961.

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GUREVITCH, Aron I. As categorias da Cultura Medieval. Trad. J. G. Monteiro. Lisboa: Caminho, 1991 (Coleção  Universitária).

KOTHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios)

NUNES, Irene F. A Demanda do Santo Graal. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1995.

TODOROV, Tzvetan. A Demanda da Narrativa. In: _____. As Estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.167-190.

THOMPSON, Frank, C. Bíblia de referência Thompson. Trad.  João F. Almeida. São Paulo: Vida, 2000.